Um em casa do outro

Um em casa do outro Rangel Cerceau Netto


Compartilhe


Um em casa do outro


Concubinato, família e mestiçagens na comarca do Rio das velhas (1720-1780)




Este livro retrata a dinâmica da vida familiar de homens e mulheres, social e culturalmente diferentes que se relacionavam, vivendo em uma sociedade que os desqualificava normativamente. Neste sentido, foi salientada a idéia de que o concubinato constitui-se em outras formas de uniões que poderiam ser vistas como variantes do estado conjugal. Essa visão pautou-se na descoberta e no reconhecimento de relações concubinárias heterogenias que nos remeteu aos costumes e padrões sociais dos diversos grupos étnicos e culturais que conformaram o dia-a-dia das vilas, arraiais e cidades da América portuguesa nos setecentos.
O resultado deste trabalho enfatiza a importância dos vínculos familiares pautados nas uniões livres entre portugueses, africanos, índios, mestiços, outros estrangeiros e naturais da terra, as quais apontam para um cenário familiar híbrido. Assim, pela análise documental feita nas devassas eclesiásticas referentes aos delitos de concubinato, tipificados segundo o olhar dos visitadores eclesiásticos, foi possível observar a existência de diversos códigos e de outros tipos de famílias organizadas e estruturadas de maneiras distintas. Também a associação das devassas com outras fontes como testamentos, cartas regias e fontes literárias permitiu fazer uma análise mais completa tanto da sociedade em estudo como em diferentes momentos da vivencia dos sujeitos.
O morar em casas separadas ou fugir para outros lugares em decorrência das visitas eclesiásticas, acabaram, naquele contexto, constituindo-se em estratégias utilizadas pelos concubinos para não serem molestados, constituindo assim, outras configurações de estrutura familiar. Essas famílias protagonizadas por Franciscas, Franciscos, Marias, Manoéis - ou seja, por uma infinidade de sujeitos sociais, marcaram a mobilidade e reproduziram a dinâmica da sociedade em suas complexas formas de organização familiar, principalmente na preservação de distintos costumes conjugais.
Toda essa dinâmica descrita no livro foi mensurada por dados estatísticos, o que possibilitou afirmar que as uniões baseadas na concubinagem se estabeleciam, majoritariamente, entre homens livres brancos e mulheres pretas e crioulas/mestiças forras. Havendo, também, um número expressivo de homens livres brancos envolvidos com mulheres pretas e crioulas/mestiças escravas.
Por outro lado, notou-se que as mulheres livres brancas sentenciadas uniram-se, na maioria dos casos, a homens da mesma condição sociojurídica. Já as mulheres forras e escravas relacionaram-se com homens de todas as camadas sociais. Portanto, é justamente na análise do grupo das mulheres forras e escravas associadas aos homens livres que pode estar a chave de muitos motivos pelos quais a sociedade colonial legitimou, mediante a prática costumeira do concubinato, a bastardia e a mestiçagem. Assim, refletindo intensamente a dinâmica sociocultural da população no período.
Em outras palavras, o costume da concubinagem se dava, na maioria das vezes, entre indivíduos de classes sociais diferentes. De certa maneira, essa constatação pode ser inferida considerando-se o grande percentual de homens livres envolvidos com mulheres forras e escravas, o que influenciou, de forma decisiva, a configuração das relações consensuais na Comarca do Rio das Velhas. Constatou-se, aqui, um dos principais mecanismos usados por mulheres libertas para conquistar em uma sociedade escravocrata a ascensão social e econômica num universo extremamente adverso. Isso, certamente, permitiu minimizar os estigmas infligidos pela escravidão, pelo preconceito e por práticas misóginas tão presentes em alguns segmentos da sociedade.
Com efeito, o estudo mostra que, no caso das relações concubinárias, elas abriram para muitos sujeitos um espaço de resistência amparado em estratégias familiares que forçaram adaptações na ordem escravocrata e estamental da sociedade colonial. Prática freqüente amparada em valores culturais, a concubinagem foi, acima de tudo, um fenômeno capaz de oferecer mecanismos de inserção social e econômica. Assim os indivíduos praticantes do concubinato foram agentes ativos de sua história, ao conquistarem certa autonomia.
Daí se pode verificar que, na junção das tradições socioculturais dos diversos grupos sociais e indivíduos envolvidos, podem ser encontradas as razões da prática do concubinato. Desse modo, neste livro, acreditou-se que foi a mestiçagem processada entre sujeitos tão diferentes em comportamentos, crenças e saberes uma das condições principais para a existência da concubinagem em larga escala na sociedade colonial.
Enfim, constatou-se, diferentemente de alguns outros estudos sobre o tema, que a vida familiar não se constituiu na América portuguesa somente pelo foco do matrimônio católico e da moral cristã. Tais enfoques não valorizaram a percepção da diversidade cultural e de um cotidiano marcado por comportamentos familiares diferentes. A dificuldade desta pesquisa não foi perceber isso, mas, sim, apontar a forma pela qual o concubinato foi sendo construído como uma alternativa viável e bastante comum que absorvia os interesses de grande parcela da população livre, forra e escrava, levando em conta a historicidade dos sujeitos e suas vivências.

Edições (1)

ver mais
Um em casa do outro

Similares


Estatísticas

Desejam
Informações não disponíveis
Trocam
Informações não disponíveis
Avaliações 0 / 0
5
ranking 0
0%
4
ranking 0
0%
3
ranking 0
0%
2
ranking 0
0%
1
ranking 0
0%

25%

75%

André
cadastrou em:
15/03/2011 17:47:49

Utilizamos cookies e tecnologia para aprimorar sua experiência de navegação de acordo com a Política de Privacidade. ACEITAR