Uma visão ampliada da obesidade: Reflexões sobre o cuidado na atenção básica

Depois de um longo percurso de planejamento, reflexões, construções e desconstruções, por vezes interrompidos por momentos marcantes como a atual pandemia da Covid-19, temos a satisfação de vos apresentar este documento, intitulado “Uma visão ampliada da obesidade: Reflexões sobre o cuidado na atenção básica”. A publicação trata-se do primeiro volume de uma série de dois volumes, que subsidiarão o curso de aperfeiçoamento “Enfrentamento e Cuidado da Obesidade na Atenção Básica”, executado pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE – com o apoio do Ministério da Saúde e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq –, no âmbito do projeto “Processos Formativos para o Enfrentamento e Controle da Obesidade no Âmbito do SUS em Pernambuco - ECOASUS-PE”, financiado pela Chamada Pública CNPQ/MS/SAS/DAB/CGAN No 26/2018. Esse projeto tem o objetivo de sensibilizar gestores e qualificar o cuidado à pessoa com obesidade no âmbito da atenção básica do estado de Pernambuco.

Gostaríamos de iniciar esse percurso explicando os sentidos e simbolismos envolvidos no título desta obra. Em princípio, o reconhecimento da obesidade enquanto fenômeno, morbidade, fator de risco e desafio para a saúde pública local, nacional e mundial, de caráter complexo e multifatorial, fundamenta a urgência por uma visão ampliada acerca do tema, que repercuta em práticas humanizadas, dialogadas e tão diversas e complexas quanto a vida das pessoas em seus respectivos territórios. Esse olhar ampliado dá sentido à luta pelo direito humano à alimentação segura, saudável, justa e que respeite a diversidade dos biomas brasileiros, a multiplicidade de formas de vida e os diferentes corpos, a partir da compreensão de que a obesidade, a fome, a desnutrição e as questões ambientais, sociais e econômicas estão intimamente conectadas. Esse olhar também busca evitar a reprodução de práticas estigmatizantes e culpabilizantes nos serviços de saúde, que ignoram a múltipla determinação da obesidade .

As reflexões sobre o cuidado na atenção básica nascem do potencial deste nível de atenção à saúde por seu alto grau de capilaridade e pelo vínculo que possibilita entre população e território adscrito, sendo um espaço fundamental para a prevenção, cuidado e acompanhamento de pessoas com obesidade, no Brasil.

Apesar da inegável capacidade de resolutividade em meio às atuais demandas de saúde a fim de reduzir as iniquidades, a atenção básica ainda apresenta precárias instalações físicas, escassez de recursos, carência de profissionais, além de vivenciar, neste momento, mudanças importantes no seu modelo de financiamento, repercutindo na lógica de trabalho e cuidado. Ao mesmo tempo, a Covid-19 colocou a humanidade diante de um dos principais desafios sanitários da história, somando-se às doenças crônicas, obesidade, problemas de saúde mental, além do aumento da busca por atenção psicossocial e reabilitação. Neste contexto, reafirmamos a importância da equipe multiprofissional para o enfrentamento da obesidade e outros problemas complexos do território e reforçamos o papel fundamental das Equipes de Saúde da Família com o apoio matricial da equipe de profissionais do Núcleo de Apoio à Saúde da Família para o alcance de todo potencial de resolutividade e efetividade da atenção básica.

Os elementos, descritos acima, que fundamentam o título desta obra também conectam seus módulos, didaticamente divididos em seis, sendo que três estão contidos neste primeiro volume e os outros três serão publicados no volume seguinte. Neste primeiro, vamos discorrer sobre os Determinantes sociais e comerciais da saúde e sua relação com a obesidade (módulo 1); Sistemas alimentares: abordagem conceitual e suas implicações na saúde (módulo 2) e Guia Alimentar para a População Brasileira como instrumento na promoção da alimentação saudável (módulo 3).

Vale destacar que, ao longo de toda a leitura, vocês serão convidadas (os) a refletir sobre o território , sua diversidade e adversidades, que espelham as desigualdades na ocorrência da obesidade.

O primeiro módulo, que trata sobre Determinantes sociais e comerciais da saúde e sua relação com a obesidade, foi dividido em cinco unidades. A primeira tem o objetivo de situar a (o) cursista acerca do conceito e da evolução dos determinantes sociais da saúde (DSS). A segunda enfatiza o componente comercial dos determinantes sociais e sua relação com a pandemia de obesidade. A terceira apresenta uma discussão sobre a importância do incentivo à atividade física como uma intervenção nos Determinantes Sociais da Saúde, com foco na infância. A quarta fornece subsídios epidemiológicos quanto à situação (incidência/prevalência) da obesidade no estado de Pernambuco e no país. Por fim, a quinta unidade estimula reflexões sobre a sindemia de obesidade, desnutrição e mudanças climáticas, bem como o seu impacto na saúde humana e economia mundial.

Dessa forma, espera-se que ao final do módulo as/ os cursistas tenham um arcabouço teórico acerca dos determinantes sociais e comerciais da obesidade, compreendam as relações entre esses determinantes e a sindemia global de obesidade, desnutrição e mudanças climáticas e reconheçam a dimensão da situação da obesidade no estado de Pernambuco e no país.

O segundo módulo discorre sobre os aspectos conceituais relacionados aos sistemas alimentares e ao impacto na saúde pública. Para simplificar a leitura e compreensão, o módulo foi dividido em quatro unidades. A primeira tem o objetivo de apresentar a/o cursista os principais conceitos, elementos e tipos de sistemas alimentares existentes. A segunda apresenta os impactos destes sistemas no âmbito político, econômico, social e da saúde, e sua relação com a obesidade. Na terceira são descritas algumas políticas e programas para a garantia do Direito Humano à Alimentação e Nutrição Adequadas (DHANA) com enfoque na governança para o fortalecimento de sistemas alimentares saudáveis. Por fim, a última unidade abordará a agroecologia enquanto estratégia social e política de promoção da saúde e de sistemas alimentares sustentáveis. Dessa forma, espera - se que ao final do módulo as (os) cursistas tenham construído um sólido arcabouço teórico acerca dos elementos e tipos de sistemas alimentares existentes; refletido sobre os prováveis impactos de sistemas alimentares não saudáveis; que sejam capazes de reconhecer em seu território de atuação estratégias de governança para a garantia do DHANA, além de perceberem na agroecologia um elemento social e político importante na promoção da saúde e de sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis.

O terceiro módulo, que trata sobre o Guia Alimentar para a População Brasileira como instrumento na promoção da alimentação saudável, foi dividido em quatro unidades. A primeira tem o objetivo de situar a (o) cursista acerca das bases científicas que orientaram a estruturação desse Guia e fundamenta sua utilização no âmbito da atenção básica. A segunda apresenta um instrumento de diagnóstico e orientações quanto ao aconselhamento nutricional pautado na perspectiva do processamento industrial de alimentos. A terceira contextualiza o ato de comer e a comensalidade como dimensões fundamentais para a adesão a uma alimentação saudável. Finalmente, a quarta unidade apresenta os desafios contemporâneos para implementação das atuais recomendações de um consumo que seja sustentável e promotor da saúde.

Dessa forma, espera-se que ao final do módulo as (os) cursistas tenham um conhecimento acerca do arcabouço teórico relativo ao Guia Alimentar para a População Brasileira e compreendam os principais desafios para adoção de um consumo alimentar saudável e sustentável, de maneira que possam se utilizar do instrumento de diagnóstico aqui discutido e ainda que, ao realizar aconselhamento nutricional, esse esteja pautado nas recomendações do Guia.

Caminhando para o fim dessa apresentação desejamos que vocês façam uma boa leitura e que este livro possa fornecer elementos e fundamentos de reflexão e resistência à padronização da vida, corpos e existência e permitir, indiretamente, a expansão da nossa subjetividade, não aceitando a ideia de que somos todos iguais, como referiu Ailton Krenak, ao explicar que, à exemplo dos povos indígenas, essa é a principal forma de resistência neste mundo. Sem a intenção de apresentar respostas para todos os problemas relacionados à obesidade ou esgotar o tema, até mesmo porque isso seria inviável em um curso de 180h, esperamos gerar inquietações, que despertem a busca por mais conhecimentos, que suscitem a compreensão de que outras formas de ser, fazer e cuidar são possíveis e necessárias, que repercutam em práticas profissionais humanizadas e que coloquem “ a pessoa” na centralidade do cuidado.