Vícios de imanência

Vícios de imanência Paulo Ferraz


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Vícios de imanência





Os títulos dos livros lançados até aqui por Paulo Ferraz — Constatação do óbvio (1999), De novo nada (2007) e Evidências pedestres (2007) — registram as buscas de uma poética que, agora, neste Vícios de imanência, mostra todas as suas garras. Ou todas as suas garras até aqui, porque a leitura dos livros demonstra que a poesia do Paulo, sob o manto sóbrio da observação da vida em seu enredo cotidiano, se faz sempre atacando a si própria para avançar sobre seus alvos. É bem provável, portanto, que, enquanto lemos este livro, outros alvos já estejam em sua mira.
Não carrego, à toa, no vocabulário bélico. Após duas décadas fazendo poemas (e, deve-se destacar, também estudando e traduzindo poemas, um aspecto não menos importante de sua oficina crítica-criativa, que nos ajuda a desenrolar mais alguns fios do perfil que essa poética assume agora) que, no atrito com as ondas da poesia de seu tempo, faziam surgir e retorcer e ganhar forma sua própria voz, Paulo revela agora o que estava sendo gestado nesse longo processo: colocar o óbvio do avesso, flagrar o futuro sob o nada de novo, desmascarar os subterrâneos do evidente, subverter o pedestre em extraordinário, até ser possível essa poesia que, no mesmo movimento em que nos envolve em seus afetos, convoca para as lutas do nosso tempo.
A poesia, aliás, adora longos e tortuosos processos. Não é raro que livros escritos em momentos muito diversos se iluminem mutuamente dentro da obra de algum poeta. No caso de Paulo Ferraz, por exemplo, a série de poemas “Para não esquecer”, dedicados contra alguns dos algozes da ditadura militar, como Médici, Erasmo Dias, Cabo Anselmo, entre outros, ao inverter a forma costumeira dos poemas dedicados para, não apenas coloca na garganta do leitor a incômoda homenagem às avessas, mas torna central, para toda a leitura do livro — e, a meu ver, dos livros todos de Paulo –, a ideia de uma poesia que, para além da anotação “superficial” (a constatação, a repetição, a evidência) do cotidiano, e até mesmo do papel da intimidade nele, busca as entranhas da História e toma partido diante do que se apresenta.
Já no título, a ambiguidade entre a imagem do poeta como viciado em imanência e a sugestão de que a própria imanência — a dimensão material e “interna” da vida — tem seus vícios, seus defeitos (em certo sentido: suas transcendências) coloca o leitor diante da árdua tarefa de, daí em diante, se orientar por entre as tramas de um livro que tanto convoca para sua dança interior quanto repele, cheio de arestas, nosso desejo de abrigo, ao esfregar contra nossos olhos as feridas de um passado que não passa.
E é incrível e angustiante imaginar o quanto ganha, em força e atualidade, a poesia deste livro por aparecer no mesmo momento em que, para nossa infelicidade, o noticiário volta a dar provas da nossa incapacidade de deixar ditaduras e outras tragédias para trás. Se há pouco tempo o leitor poderia imaginar, diante das personagens homenageadas e contra-homenageadas neste livro, que o poeta se referia ao passado, desenterrando o que fomos capazes de superar, hoje esse mesmo leitor vê nos poemas justamente o que não superamos e, por isso, pode nos atacar na próxima esquina, com o mesmo ódio e as mesmas armas ainda quentes nas mãos.
Aliás, a poesia de Paulo Ferraz nunca foi uma poesia de dentro de casa. Pelo contrário, os espaços de sua poesia sempre foram fraturados: o cotidiano rasgado pela História, a casa rasgada pela rua, a vida rasgada pela morte. Nenhuma fronteira, nenhum conforto, nenhum abrigo dura muito nos poemas do Paulo. E é justamente aí que ele pretende colocar o seu leitor: “a poesia não é um/ prédio de apartamentos, é antes / uma ruína arqueológica, lemos apenas/ a parte que sobreviveu, velhas paredes,/ velhos alicerces, talvez uma janela/ do que chamamos poema. Tudo o mais/ devemos nós mesmos reconstruir” (“Poética”). Esta é a tarefa de Vícios de imanência.
Aqui, a começar pela forma dos poemas — em que o verso é surpreendido pela quebra em colunas; as estrofes do soneto se desfazem/refazem em prosa; blocos se impõem aos versos e ocupam a página indicando outras leituras e bloqueando o passeio pelas margens brancas que os poetas costumam reservar –, o leitor encontra um poeta disposto a desfazer o que está dado, a resistir ao que se impõe, a revirar sua própria voz e aquilo de que ela fala para atingir — dela, nela, com ela — outras profundezas.
Em “Não está em pauta”, ao pegar os cubos de carne no congelador, vê o que era vida no “corpo morto de 15 arrobas”, as quatro patas ainda no pasto, e, enquanto prepara o almoço, engole — rumina — as notícias do mundo e as infinitas inquietações da poesia. Perfurar as coisas, transpor, deixar falar nas coisas o que está escondido: este é seu vício, esta é a imanência que seus poemas revolvem. E ofertam.

(Orelha do livro - escrita por Tarso de Melo)

Poemas, poesias

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