Com um narrador denso e realista e uma prosa árida na tradição de Raduan Nassar e Cormac McCarthy, Faça-se você mesmo, de Enzo Maqueira, é uma jornada em busca da literatura que há no real, uma crônica da felicidade perdida. O livro, um noir rural com elementos de ensaio filosófico, foi finalista do Prêmio Silverio Cañada da Semana Negra de Gijón, na Espanha (2019). A edição da Ponto Edita, com intervenção do escritor e cineasta J. P. Cuenca e capa com fotografia do premiado diretor de arte e publicitário carioca Bernardo Cople, marca a estreia de Maqueira no Brasil.
Faça-se você mesmo acompanha alguns dias na vida de um homem sem nome e sem convicções que foge de Buenos Aires para a casa dos avós, onde passava os verões de sua infância — trata-se de um território sagrado em San Benito, vilarejo fictício, quase mítico, no meio da Patagônia desértica.
Solilóquio de um personagem atormentado pela possibilidade de estar doente e pela necessidade não apenas de ser outra pessoa, mas sobretudo de imaginar como deverá ser (para ele, a felicidade está em transformar-se em artista), o livro celebra as fronteiras entre ficção e realidade e demole narrativamente as convenções da masculinidade.
A partir de referências aos grandes mestres da Nouvelle Vague e à banda de rock inglesa Queen, a narrativa extrapola os limites do gênero e ganha contornos cinematográficos à medida que o protagonista se torna, ele mesmo, personagem da própria ficção. Mas a beleza da prosa de Maqueira está na desconfiança dos limites da palavra (na epígrafe que abre o livro, tirada do filme Adeus à linguagem, de Jean-Luc Godard, lemos: “As palavras — não quero voltar a saber delas”), o que pode causar nos leitores certo nervosismo ou ansiedade por símbolos e interpretações. Pois se a narrativa começa com um tom quase idílico de busca da felicidade perdida na infância, ela vai aos poucos se transformando em outra coisa, ficando mais sombria.
A maior homenagem, porém, é a Fellini, em especial ao filme Oito e meio (há inclusive um capítulo com esse título). Em certo momento, o narrador declara: “Fellini tinha razão: as únicas memórias que valem a pena estão na infância”. Entretanto, se, como em Fellini, o romance de Maqueira de fato tem um ponto de partida autobiográfico, sua prosa não se resume à autoficção, mas se abre às exigências da narrativa e propõe uma reflexão profunda sobre como a sociedade criou, mediante múltiplas ficções, uma idealização da obrigação de ser feliz. Essa obrigação (o último bastião do neoliberalismo) é equacionada no discurso vazio da autoajuda que ressoa na ironia fina presente na polissemia do título (que torce a fórmula “do it yourself”) e dá o tom do estilo que a linguagem de Maqueira coloca em cena: um sarcasmo fellinesco que transita entre realidade, sonho ou suprarrealidade.
Faça-se você mesmo é o livro nº 5 da Ponto Edita.
Ficção / Literatura Estrangeira / Romance