frederick.alves.71 30/08/2020
Lovecraft ressignificado
Mais uma resenha impressionista de um livro mexeu muito comigo.
Basicamente a obra trata dos destinos de um grupo de negros vivendo em Chicago nos anos 1950 e de todos os obstáculos (sejam mundanos ou sobrenaturais) que os mesmos precisam passar para sobreviver.
O título evoca o horror cósmico de Lovecraft e nos dá a entender que esse será o mote da obra. Apesar das várias referências diretas no primeiro conto (o livro em si é uma coletânea de contos que gira em torno dos mesmos personagens através de seus pontos de vista) fiquei com a impressão de que a atmosfera lovecraftiana não foi bem transposta para essa obra. Em termos de horror, o autor se aproxima mais de Stephen King, pois faz questão de ressaltar que a maldade humana (do racismo estrutural, no caso) é tão ou mais intensa e ameaçadora do que a sobrenatural. Isso não faz com que o livro seja ruim, longe disso, só o impede de ser, em essência, lovecraftiano.
Uma vez dito o que o livro não é, cumpre agora dizer o que ele é: uma excelente experiência que nos aproxima do modo de vida e visão de mundo dos negros em um Estados Unidos segregado, carregado de ódio. Seria utópico dizer que o livro trata dos anos 1950, exclusivamente; mas não, ele se passa nessa década, suas problemáticas, contudo, são seculares e difíceis de desconstruir. Todavia o livro dá um passo nesse caminho. Nesse sentido ele continua mais atual do que nunca.
Um outro passo nesse caminho foi dado na criação da série da HBO, com produção de Jordan Peele e J. J. Abrams, mas a rainha da série é a showrunner Misha Green. O autor do livro fez algo extraordinário, só que com um ponto de vista de fora, longe do protagonismo. Já Jordan Peele e Misha Green têm lugar de fala, e estão fazendo acréscimos esplêndidos à obra que serve de base para a série. Ainda vamos ouvir falar muito sobre ela, pelos debates e reflexões que propicia.
Voltando ao livro. As personagens são muito boas: Montrose e Atticus Turner (pai e filho) têm uma relação complicada, difícil, humanizada. George Berry (irmão de Montrose) é muito bom também, ele faz referência a um personagem real que escreveu o Green Book; o conto que vai do seu ponto de vista é bem pulp fiction, um misto de aventura quase steampunk e com atmosfera noir. Letitia e Ruby Dandridge são bem marcantes. A primeira pela impetuosidade e engenhosidade e a segunda pelas reflexões que sua situação singular suscita. O conto que foca em Ruby, intitulado Jakyll em Hyde Parque é o mais bem escrito. Ele te encanta, te enfurece, te anima e te impressiona. Esteticamente perfeito. Hippolyta Berry (esposa de George) tem o conto mais próximo da ficção científica, bem ao estilo de John Carter e Flash Gordon, muito divertido, mesmo.
Por fim, temos Caleb Braithwhite, um homem branco. E aí eu chego no momento em que devo criticar a obra. Ele é o fio condutor de todos os contos. Em termos de narrativa, ele é o agente da mudança. E, devido ao maior espaço que tem no livro, é o personagem mais bem desenvolvido. Então temos um livro em que o destaque são os personagens negros, mas cujo ator central é um branco, que age; resta aos outros personagens reagirem ao que Caleb faz. Isso quase, quase, me fez desistir do livro, mas o capítulo final trouxe uma catarse que valeu a pena.
Algumas coincidências ao longo do livro parecem forçadas, todavia, quando sabemos do real poder de Caleb, vemos que tais circunstâncias foram muito bem pensadas pelo autor, que chegou a comentar ter passado 30 anos pensando na obra. Esse tempo investido fez o roteiro ficar muito bem amarrado. Em função disso, e da importância e atualidade do tema, o livro se tornou um dos meus preferidos. Altamente recomendado.