Lili 20/08/2022
Tão atrevidinha, tão sem medo: Andrea Abreu
Na zona rural de sua terra natal, a nebulosa Tenerife nas Ilhas Canárias, Andrea Abreu constrói uma história cotidiana sobre duas amigas inseparáveis: Isora e a narradora, apelidada de “Shit”, a qual jamais sabemos o nome que diferente de Isora — a quem nutre quase uma veneração que entra em conflito volta e meia com a discordância de atitudes tomadas pela amiga, o desejo de ser como ela e o lamento de às vezes pensar que a própria individualidade está desaparecendo — não conseguia dizer “não”, tinha medo que as pessoas, tinha medo que Isora deixasse de gostar dela.
“Nos dias em que Isora queria morrer eu também sentia que queria morrer [...] Eu me perguntava como ela sabia tantas coisas que eu não sabia e então ficava triste porque pensava que eu não tinha tristeza própria, que a minha tristeza era a dela só que dentro do meu corpo, uma tristeza tipo de imitação, duas tristezas duplicadas, a marca falsa de uma tristeza, essa era eu, porque eu não tinha motivos pelos quais estar triste mas os inventava.” (p.97)
“Pança de Burro” é antes de tudo um romance corajoso, ousado, é essa a razão do título desse texto, que também é um dos capítulos de Andrea que assim como Isora parece não ter medo qualquer que as pessoas deixem de gostar dela ou gostar do livro. Ela poderia ter escolhido contar essa história de um jeito polido, menos chocante, menos ultrajante, mais limpo, de certo modo, mais comercial, e ainda conseguir passar boa parte do que queria de mensagem, eu acredito.
Mas ela é mais Isora, não é “Shit”, é vulcânica e entrega, joga pra fora, despeja essa história cheia de incômodos, nessa transição de fim da infância e início da adolescência de muitas descobertas e muita dúvida, muito questionamento, sem filtro, um relato íntimo e cheio de elementos do meu próprio fim de infância de Hamtaro, de Pokémon, de tentar se espelhar em alguém, de fingir conhecimento das coisas.
Apesar de ser o foco, Andrea não deixa também de comentar a dicotomia que é viver na pobreza em um lugar paradisíaco, enquanto as casas luxuosas ali ao lado são ocupadas por estrangeiros, que cortam as estradas com seus carros de milhões. Tudo isso em metáforas peculiares, colocadas até de um jeito descontraído em alguns momentos, mas atingindo de uma forma aguda, um tanto doída, principalmente para quem se vê um pouco na narradora.