Beatriz177 05/05/2022
POÉTICO, SENSÍVEL E DOLOROSO
"Quando os bezerros são finalmente abatidos, a entrega de suas vísceras é seu último ato, os intestinos chocados com a súbita velocidade dos finais."
Me dói um pouco não conseguir avaliar esse livro com cinco estrelas, mas, assim como um remédio amargo, é preciso admitir: a partir do capítulo dois, o autor parece ter-se perdido do objetivo confessionário com o qual o relato de Cachorrinho se introduziu, embarcando para explorar as profundezas de uma relação amorosa que, de forma alguma, poderia ser descartada na hora de contar a história do personagem principal, mas que não nos permite enxergar bem qual é a relação daquele namoro com a tentativa do principal de alcançar (ou afastar) a sua mãe. Só por isso, pela súbita mudança de foco da história que escapa do que me deixou mais animada sobre ela, que eu tirei uma estrela da minha avaliação geral dele. Apesar disso, não posso dizer que gostaria que muitas coisas nele fossem diferentes; pelo contrário, o que o Ocean Vuong fez nesse livro ultrapassa as barreiras da imaginação e, de tão bem construído, te faz sentir por todo corpo a brutalidade de cada micro-agressão e violência pela qual o Cachorrinho passou e as quais ele teve que suportar. Esse é um livro que, assim como I'll be Right There (até mais que esse outro livro, na verdade), me fez ter uma visão diferente do que é a escrita, do que é um relato de vida.
Ainda que numa posição histórica e cultural diferente, além de viver uma realidade inegavelmente distinta, o estilo narrativo de Vuong e a maneira livre como ele faz uso de metáforas faz com que seja possível sentirmos em nosso corpo a devastação que a falsa paz pode trazer para a vida de um imigrante como ele ? cuja humanidade, dele e de sua família, foi tantas vezes dissolvida na sua origem pelos homens brancos ? e para a de sobreviventes de uma guerra tida como uma das mais violentas da história, ainda que a verdadeira dimensão dessas dores se guardem exclusivamente na mente e corpo daqueles que, de fato, vivenciaram essa sequência de eventos caóticos.
Não acho que poderia abrangir a ampla sensibilidade desse livro em uma resenha curta aqui no skoob porque questões como identidade e laços familiares turbulentos nunca foram algo suscinto e simples de se falar sobre e quando se trata do Cachorrinho, então, cuja criação girou em torno de uma mãe traumatizada e uma avó esquizofrênica tentando torná-lo tão apto à sobrevivência quanto elas através dos mesmos meios tortuosos pelos quais foram ensinadas (e que são os únicos que elas conheceram), essa discussão é ainda maior ? e, provavelmente, algo que só pode ser compreendido através do próprio livro.
Durante a narrativa da história existem muitas nuaces, significados resguardados nas entrelinhas e cenários precisos que custam palavras precisas, palavras específicas, e cada uma delas penetra nosso pensamento e nosso sentimento de maneira que, uma vez lidas aquelas prosas ? porque o livro do Voung é, realmente, quase isso ?, não é mais possível esquecê-las. Podemos ser, até, enganados pela tom, pela essência dolorosa e agressiva de algumas ocorrências, mas Sobre A Terra Somos Belos Por Um Instante é puramente isso: pessoas tentando sobreviver e, antes de si mesmas, tentando com a vida fazer com que os seus amados vivam ? que eles aprendam a sobreviver para que suas almas encontrem nisso, de alguma forma, paz.
Esse livro é, como a citação no início dessa resenha, isso: as vísceras reviradas de pessoas castigadas pela ganância e pelo ego de homens brancos que não enxergam mais do que os próprios lucros; os galhos de uma árvore extensa, as teias de aranha que entranharam todas as pessoas dentro da sua área de alcance e continuaram a persegui-las por meio de assombrações, miragens, animais empalhados ou componentes morfossintáticos.
E nenhum deles escapou dessas assombrações: nem os mais velhos, Rose e Lin, nem os mais novos, Trevor e Cachorrinho ? tendo um cedido aos intermédios de vícios nocivos e, o outro, se perdido em nomenclaturas vencidas, em partes de si que não puderam encontrar terreno firme para se fixar numa origem instável, que se reiniciou, e repetiu o ciclo, sem lhe permitir um espaço fixo. Como se ele fosse os escombros daquela guerra, mesmo não o sendo ? mas que todos naquele país estrangeiro tentaram fazê-lo acreditar ser por um longo tempo.
Eu admito que, de primeira, as idas e vindas temporais na narrativa tornaram a leitura difícil para mim ? cheguei até a desistir de ler 1 vez pela confusão com a qual me deparei logo no prólogo, apesar da beleza da estrutura textual?, mas essas mudanças de cenário se tornam mais sutis e compreensíveis após o prólogo e, depois, passam a contribuir para uma imersão maior nos sentimentos do Cachorrinho e na história dele.
O Ocean Vuong deu um show com esse livro. É espetacular, extremamente poético e lindo de uma forma dolorosa (mas de uma dor que vale à pena ser atravessada).