Júlia Pinheiro 11/02/2024
A delícia do desconforto
O livro conta a história de Cecília, uma pediatra que odeia crianças e seus pais. Exerce uma medicina fria, objetiva, sem encantos, cirúrgica (com o perdão do trocadilho). O começo é bastante perturbador, já que Cecília é profundamente mesquinha, egoísta, antiética e insensível. É perturbador perceber quantos pensamentos horripilantes ela pode ter sem se abalar.
Admito que senti dificuldade no início da leitura. Não porque seja mal escrito - ao contrário, é excelente -, mas porque Cecília choca todos os valores humanos que acreditamos existir em um pediatra. A frieza e a falta de humanidade assustam, constrangem, causam um profundo desconforto durante toda a leitura.
Esse é o principal trunfo do livro. Não estamos falando de uma protagonista cativante ou bondosa. Ela é o oposto disso. E é nisso que reside o encanto: a autora contesta por meio dessa figura antipática o senso de hierarquia e de autoridade que a medicina lhe confere.
Mas mesmo diante disso tudo, de uma hora para outra, você se pega torcendo por Cecília. Torcendo para que ela retome o posto de neonatologista, torcendo pela relação com Celso, torcendo pela amizade com Deise, mas principalmente, torcendo por esse lado humano e maternal que nasce com Bruninho.
É cativante, surpreendente e desconfortável. Tudo ao mesmo tempo.
Parabéns à autora que conseguiu com tanta competência unir todas as nuances e conflitos de Cecília com tanta habilidade. Além é claro da riqueza de detalhes sobre a prática médica. Uma excelente obra, valeu muito a pena a leitura.