Livia1107 26/11/2023
Sonhar ficou ainda mais significativo
Silenciosamente eu agradeci à antropóloga Hanna Limulja durante toda a leitura de O desejo dos outros, porque por meio de suas páginas minha mente se expandiu até a floresta amazônica e além, até as costas do céu, por dentro da realidade paralela que consiste o mundo onírico dos yanomami. Que experiência incrível.
“Mas no mundo em que nos encontramos hoje, por que falar dos sonhos yanomami? Primeiro, porque os yanomami ainda estão vivos, a despeito de pandemias e guerras que os atingem de tempos em tempos. Segundo, porque é por meio de seus sonhos que eles fazem política, como diria o líder e xamã yanomami Davi Kopenawa. E mais do que nunca é preciso aprender a fazer política como e com os Yanomami. Isso implica em conhecer que tudo o que existe merece consideração e implica não sonhar consigo mesmo, como fazem os brancos. Para fazer política, o outro é preciso e é preciso ter cuidado, no sentido de cuidar, de pensar no outro”, a autora escreve em sua apresentação.
Na tese de doutorado transformada em livro, Hanna Limulja apresenta com leveza e paciência o vocabulário, o cotidiano, os rituais e festas, as preocupações e desejos, os mitos e histórias desse povo indígena tão ameaçado. A antropóloga passou quase um ano com os yanomami, coletando sonhos de pessoas de todas as idades, mas foram principalmente os xamãs que aprofundaram para ela como os sonhos são essenciais para como os yanomami estruturam seu entendimento da vida.
Para eles, o que vivem em seus sonhos é outra forma de vivenciar a realidade, pois é no espaço-tempo onírico que nossas imagens interagem com as imagens de tudo o que é vivo ou que já viveu. “Os brancos têm as escolas, os yanomami têm os sonhos”, os xamãs explicam, porque é quando sonham ou vivenciam o transe promovido pela Yãcoana que eles aprendem sobre o passado, o presente e o que pode acontecer no futuro, além de conhecer lugares distantes e pessoas que nunca viram antes durante a vigília.
Para os yanomami, o que nos aparece em sonho é resultado de um desejo desse ente sonhado: se eu sonho com alguém, é porque essa pessoa quer se comunicar comigo, é um desejo da imagem dela se comunicar com a minha enquanto estou dormindo, à noite, único momento em que podemos realmente sonhar. Por isso, o sonho é um “desejo dos outros”, como Limulja destaca no título. Trata-se de uma perspectiva muito diferente para a maioria dos brancos que entende a atividade onírica pelo viés psicanalítico do inconsciente, da expressão dos desejos ocultos do próprio sonhador.
Para os xamãs yanomami, é justamente essa limitação egoísta dos brancos, que só conseguem sonhar consigo mesmos, coms seus bens e suas preocupações, que impede a maioria de nós de entender a real extensão do mundo, que vai muito, muito além do que nossos olhos veem enquanto estão abertos, e comportam os espíritos de animais e de todos os que já morreram.
Hanna Limulja segue o caminho de outros antropólogos que divulgam a riqueza da cultura de diversos povos indígenas que lutam para que nós, os devoradores de terra, os incansáveis consumidores, consigamos entender, ou somente respeitar outras formas de existir. Em seu primeiro capítulo, ela retoma “A queda do céu”, autobiografia de Davi Kopenawa em coautoria com o pesquisador Bruce Albert, na qual o xamã expressa - sempre tendo os sonhos como principal condutor - sua preocupação com a possibilidade de que o céu caia por causa da destruição provocada pelos homens brancos.
Sonhar para conhecer, sonhar para saber do outro, sonhar para defender a vida. Hanna Limulja deixou o sonho muito mais significativo a partir de agora.
site: www.365livias.com