Queria Estar Lendo 21/05/2022
Resenha: Saboroso Cadáver
Saboroso Cadáver - da tradução em inglês, "Tender is the Flesh" - foi uma leitura desafiadora e tenebrosa. Lançado aqui pela Editora Darkside, que cedeu este exemplar em cortesia, esse horror distópico foi escrito por uma autora argentina. E fala sobre um futuro onde o consumo de carne humana passou a ser permitido por lei.
Na história, acompanhamos Marcos, cuja carreira segue o ramo do abate de humanos. Neste futuro, um vírus cobriu todos os animais do mundo e tornou suas carnes mortais para a humanidade; a partir daí, os governos resolveram liberar o consumo de carne humana de maneira "organizada", e se construiu um mundo onde imigrantes, moradores de ruas, classes sociais mais baixas e outros subjugados pela sociedade passaram a ser tratados como pedaços de carne. Não mais humanos, meros produtos para que a vida possa prosseguir a partir deles.
Deixo aqui o aviso de conteúdo de que Saboroso Cadáver é um livro perturbador. Ele foi feito para isso. É uma distopia que discute consumo e a presença constante da indústria agro ditando o ritmo do mundo, fazendo um paralelo nesse futuro terrível; ela não é uma história sobre revolução, sobre crescimento, sobre rebeldia. É uma história nua e crua sobre o pior da humanidade.
Tem gatilhos de canibalismo, violência extrema, gore, estupro, menções a pedofilia, crueldade animal e outras temáticas carregadas. Leia apenas se tiver estômago e cabeça para lidar com os temas que ela critica.
O livro de Agustina Bazterrica já começa com um soco na cara, que é justamente para ditar o peso da trama. Marcos vai até o abatedouro, e sua visão nos apresenta o local onde trabalha, onde as peças de carne - porque jamais são tratados ou chamados de humanos, para evitar a humanização e, consequentemente, o peso da culpa - são tratadas. Desde o abate até a distribuição. O trabalho de Marcos é lidar com diferentes tipos de problemas naquele ramo, e ele é bom no que faz.
Marcos é um protagonista vazio. Diferente daquele que acompanhamos em 1984, de George Orwell, não é possível torcer por Marcos; não tem humanidade dele, assim como não há humanidade no resto do mundo.
O que eles se tornaram a partir do momento em que os governos tornaram legal o canibalismo é uma sombra de crueldade disfarçada de sobrevivência.
Marcos está sozinho em casa, desde que a esposa se mudou, perturbada pelo luto com a morte do filho pequeno. Distante de tudo e de todos, com apenas a sua mente o acompanhando, é possível sentir que muito do que Marcos era já se foi.
Ou, vai ver, ele sempre foi assim. Parte da sombra que é esse novo mundo. No começo, não tão abertamente cruel quanto outros personagens, como donos de indústrias que veem o lucro acima de qualquer coisa, como caçadores que finalmente podem aproveitar seu sadismo de acordo com a lei.
Mas é um personagem vazio de reação. Tão desprezível quanto o mundo ao seu redor por isso.
Quando ele recebe o "presente", uma humana que foi criada para abate, para fazer com ela o que quiser, ele entra em conflito. Um conflito perturbado, abusivo, nojento. Não dá para lê-lo com empatia; não dá para sentir por Marcos nada além do horror que sentimos pelo resto do mundo.
Saboroso Cadáver - "Tender is the Flesh", da tradução em inglês - é sim uma história perturbadora, mas é também uma história que te coloca para pensar. E muito. Os paralelos dessa sociedade canibal com a nossa, com o consumo desenfreado de carne, é assombrosamente verdadeiro; é impossível não substituir as pessoas nas fábricas de carne por bichos sentenciados ao mesmo tipo de des-vida (porque não dá para chamar criação para abate de qualquer coisa além disso).
É desumano, e é ainda mais macabra a maneira com que eles tratam essa situação. Como eu disse, os governos clamam que é pura sobrevivência, mas será mesmo? Com os ricos caçando humanos por esporte? Com as carnes sendo produzidas a partir de imigrantes, classes mais baixas, pessoas criadas desde a infância para servir a mesa da família com mais dinheiro para pagar por ela?
Não seria mais fácil substituir a carne por outros alimentos, como qualquer pessoa vegana e vegetariana faz? Por que a indústria agro não parou, por que os governos permitiram que tamanho massacre fosse normalizado?
São questões que permeiam a história e a nossa cabeça conforme a trama se desenvolve, e ficam com a gente com o fim. E que fim. Se você espera revoluções ou uma pontinha de esperança, esse não é o livro; como eu disse, ninguém aqui é decente. Os poucos que são, desapareceram do radar por isso. Esse é um mundo que achou tudo bem, em prol da "sobrevivência", comer outras pessoas. Esse é um mundo perverso.
Saboroso Cadáver tem capítulos são curtos, então não enrosca em momento algum. E é simplesmente impossível parar de ler, porque você quer entender, quer saber o que vai acontecer. Quando chega ao fim, fica com uma sensação pesada no estômago.
A edição da Darkside ficou linda. Macabra, como o próprio selo diz. Gostei demais da folha de guarda, dos detalhes da diagramação, e da adaptação da capa. Ficou tenebrosa, como a história de Saboroso Cadáver pede. A tradução é de Ayelén Medail, e achei excelente.
Porque o mundo de Saboroso Cadáver não é um que pode ser salvo ou resgatado. Eles já atingiram o fundo do poço, e dali só podem cavar mais para baixo.
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