Letícia 16/09/2023
A outra filha sou eu
Aos dez anos, Ernaux escuta uma conversa da mãe com uma cliente e descobre que antes dela seus pais tiveram outra filha, morta aos seis anos de difteria. A mãe relata que nunca contaram nada a Annie para não entristecê-la e confidencia que “?ela era mais boazinha do que aquela ali”?, comparação que a atormenta pelo resto da vida.
Em A Outra Filha, a ganhadora do Nobel de literatura de 2022 redige, a convite da coleção Les Affranchis, uma carta para a irmã morta. Algumas perguntas a oprimem e a motivam a escrever: por que a irmã falecida, tratada como santa, não sobreviveu, enquanto ela, que contraíu tétano aos cinco anos, conseguiu ser salva? Por que seus pais mantiveram um silêncio sepulcral a respeito da primeira filha, levando o segredo para o túmulo? Por que ela própria foi conivente e fingiu ignorar o acontecido?
Em diversos momentos Ernaux escreve em segunda pessoa, se dirigindo à irmã morta, porém com ela não consegue encontrar nada em comum. Ambas nunca compartilharam nada, uma vez que, quando Annie nasceu, a irmã já havia morrido há mais de dois anos.
“?Tenho a impressão de não ter língua para falar de você, para te nomear, impressão de só saber falar de você no modo da negação, do contínuo não ser. Você está fora da linguagem dos sentimentos e das emoções. Você é a antilinguagem.”?
Como em O Acontecimento, aqui também Ernaux nutre a crença de que episódios marcantes de sua vida aconteceram para que ela pudesse narrá-los: sua escrita não é a consequência, mas sim a finalidade da morte da irmã. E foi justamente durante a escrita de Os Anos, ao refletir sobre as restrições socioeconômicas de sua família e a necessidade de se ter apenas um filho, que Ernaux se deu conta de que veio ao mundo para substituir a irmã morta.
É, como se pode perceber, uma temática pesada, mas, como em outros de seus livros, a autora a aborda com a objetividade de quem, ao narrar a história familiar, narra a mentalidade e os costumes de toda uma geração. E, também como no resto de sua obra, ela chega ao fim do texto com uma conclusão que é uma pedrada na consciência do leitor.