Erica 10/04/2020
Delicadeza escondida
A hora dos ruminantes
José J. Veiga
(minha edição é de 1974, Círculo do Livro, sem isbn)
Estranhos montam acampamento nos limites da cidade de Manarairema, gerando curiosidade. Mas logo o sentimento se transforma em apreensão, depois em angústia, os estranhos se aproximam aos poucos e sempre ameaçadores, disseminando medo. Logo a cidade também conhece novas aflições, como uma invasão por cachorros e depois por bois.
A sensação de aflição e opressão cresce em contínua tensão.
Literatura fantástica no Brasil, composto em terceira pessoa, os vários diálogos dão leveza e agilidade, e as descrições e narração são de grande beleza. Na obra, a sensação é de opressão, que pode ter tido origem no momento em que vivia o escritor (a Ditadura) mas que também encontra seus ecos no sentimento de opressão que a todos nos ocorre, nos momentos da vida em que nos enchemos de medo e admiramos a coragem alheia que a nós nos falta, e como mudamos e somos construídos e moldados por nossas ações.
A linguagem é rica em construções, grande variação vocabular, e lembram a oralidade e também as cidades do interior.
“Que força teria conseguido transformar aquele homem inteiriço nesse inútil feixe de medos?” (minha edição é de 1974, Círculo do Livro, p. 76)
“O silêncio do largo lembrava a tranquilidade antiga mas vinha misturado com uma espécie de cheiro de perigo iminente. Uma borboleta grande azul-pomposa entrou tonta na oficina, esbarrou de raspão na parede, pousou no cabo de uma enxó. Os dois olharam para ela encantados, como se nunca tivessem visto uma borboleta igual, ou talvez estranhando que ainda pudesse haver borboleta no ar” (p. 82)
“Mas será que não entra a força da vocação? [...] E será também que o costume de lidar sempre com o mesmo material entra ano sai ano não vai influindo na alma da pessoa, contagiando moleza ou dureza? Reparando bem, parece que cada um vai apanhando cara do ofício que desempenha. [...] As mãos do carpinteiro, o corpo, a alma do carpinteiro, não podem ser mais brutos do que a madeira. [...] Ferreiro trabalha fazendo, não desmanchando; e se desmancha é para fazer de outro jeito. Na brutalidade do ferreiro tem uma delicadeza escondida” (p. 94)
Sobre o nome da cidade, que muito se é repetido, gostaria de saber o que levou o escritor a criar o nome “Manarairema”, seria uma alusão ao “maná” que cai do céu na história da Bíblia, e que o povo (mais passivo do que ativo), tende a esperar que a solução caia do céu do que agir para mudá-la? (se tiver uma teoria, me mande)
---- Uma amiga me enviou:
"A poética de J.J. Veiga apresenta uma transitividade que se manifesta também na criação das personagens, e dos nomes próprios. A sonoridade do nome Manarairema levou à pesquisa de um dicionário de tupi: mana~ espreitar, vigiar,
espiar; ra'i-ra'ir =prole, ninhada; ram =sufixo de futuro ou rêm-ahi = apodrecer. Procurando sobrepor os sentidos à história de A Hora dos Ruminantes, Manarairema seria 'a ninhada que será vigiada' ou 'a prole sob espreita apodrece'... Não traduz, mas aproxima sentidos plausíveis.". [AGOSTINHO POTENCIANO DE SOUZA, UM OLHAR CRíTICO SOBRE O NOSSO TEMPO (Uma J_eitura da obra de José J. Veiga). ]
site: http://repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/269034/1/Souza_AgostinhoPotencianode_M.pdf?fbclid=IwAR3IGWukmZV5S2BDeK7CuHK8vv4ZHzVFpkxgYGEUmMulNxsfzj268dTQxt8