Louise 24/10/2020Visceralmente necessário
Baratas, subordem de insetos. Sua existência é quase tão antiga quando a da própria Terra, sendo altamente resistentes. Diz-se que, caso um possível apocalipse aconteça e a raça humana seja extinta, as baratas continuarão vagando mundo afora. São consideradas pragas urbanas, e podem ser vetores de bactérias, fungos, vírus entre outros, portanto, a aversão – ou até mesmo medo – a baratas é algo comum.
Imagine se o tão falado apocalipse de fato aconteça, e toda comida está agora contaminada, exceto um único tipo de inseto. Isso mesmo. Você pode escolher entre definhar de fome ou....começar a caçar baratas para viver.
Este é a pavorosa e repulsiva realidade de Barata, O Alimento.
Marcel acorda em uma nova realidade. Ele não consegue interagir com pessoas ou objetos, as ruas estão mais vazias, as pessoas que ali vivem – os Presentes - parecem mais abatidas do que de costume, como se estivessem doentes. E a única coisa comestível são baratas. Empanadas, fritas, congeladas ou até mesmo vivas, são agora o único alimento comercializado nos estabelecimentos.
Tentando entender o que acontece, Marcel encontra Angie, uma moça que está na mesma situação que ele: Não consegue interagir com as pessoas que agora comem baratas para viver. Angie diz que eles são chamados de Despertos, apenas assistem aos acontecimentos, sem interferir. Não sentem fome, frio, sono ou tristeza igual aos Presentes restantes.
Nada, seja de origem animal ou vegetal, é agora próprio para consumo, exceto baratas. Vemos pessoas nas ruas caçando em bueiros, morrendo pela falta de comida e pelas doenças que as baratas comuns transmitem ao serem ingeridas. Quando alguém morre, seu corpo é utilizado como isca para atrair esses seres outrora nojentos. A desesperança é grande, e a fome e o desespero são maiores ainda.
O governo, fingindo cuidar de seu povo, adota uma série de medidas absurdamente restritivas e ditatoriais, piorando cada vez mais uma qualidade de vida que já era péssima. Além de lidarem com um alimento escabroso, precisam sobreviver a líderes genocidas, que disfarçam seus discursos com boas intenções.
Muito mais do que apenas uma distopia caótica (e bem realista, na verdade), temos críticas viscerais extremamente condizentes com o período atual. Mesmo com a narrativa intensa, a escrita de E.E. Borba é didática, conseguindo exemplificar situações cotidianas mesmo em um cenário absurdo e propositalmente impactante desses. Mostra como ignoramos e maltratamos a natureza sem pensar nas consequências futuras, o quanto nos importamos com consumo desenfreado e não valorizamos atos e sim status, o racismo velado que, silenciosamente e aos poucos se torna uma segregação de raças, a conivência com atitudes que deveriam ser consideradas inconcebíveis. E, é claro, o quanto os políticos estão 100% nem aí com a população em geral, se importando apenas com poder e seus próprios desejos, causando muito mais o “Mal” do que percebemos. Para os governantes, somos apenas gado, e quanto menos pensarmos e mais seguirmos ordens, melhor. O impacto inicial que a situação causa é um chamariz para questões muito mais profundas. Pessoas em situações deploráveis, a normalização de atitudes e falas autocráticas, o desprezo racial, a classe alta e poderosa tirando vantagem...não é preciso acontecer uma situação desesperadora dessas para observarmos tais coisas. Está acontecendo agora mesmo.
Barata, O Alimento traz reflexões profundas sobre o modo que agimos e escolhas que fazemos, tanto no âmbito pessoal quanto, especialmente, no social. A mensagem é bem clara: Se não tomarmos cuidado, se não resistirmos e reagirmos, este futuro pode não ser tão fantasioso e distante assim.
O livro Barata, O Alimento fez sua estréia no VIII Festival Cultural do Brasil em Viena, que ocorreu entre os dias 25 e 27 de setembro.