Nilton 24/06/2020
Foi cultivado em mim o gosto pela leitura embora não tivesse acesso fácil aos livros. Por gostar de ler, também admirava a escrita. Na adolescência, minha prima e eu trocávamos inúmeras cartas narrando nosso cotidiano. Em média, a cada quinze dias chegava uma carta que prontamente era respondida. Sim, fui desse tempo. Por gostar de ler, de escrever e por outras questões, em 2004 fui parar na @folhadespaulo. Ao ser entrevistado, a chefe da redação perguntou qual era o meu objetivo. Recém saído da faculdade de História, respondi sem titubear: ?ter uma coluna no jornal?. Obviamente, ela não deu trela e acabei parando no arquivo do jornal. Resumindo os anos de Folha, decepcionei-me com o jornalismo: um amontoado de palavras frias.
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?Porque uma frase só existe quando é a extensão em letras da alma de quem a diz. É a soma das palavras e da tragédia que contém. Se não for assim, é só uma falsidade de vogais e de consoantes, um desperdício de som e de espaço.? (p. 36-7)
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Sai da Folha em 2007.
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No mesmo ano de publicação de #AVidaQueNinguémVê tornei-me professor de História da rede pública. Desde o começo, muitas turmas, muitos estudantes. No momento mais intenso, cheguei a ter 700 alunos. Para sobreviver, os indivíduos forjam massa. Sistema profundamente cruel que nos obriga a tratá-los assim. No esforço de individualizá-los, a docência torna-se também um martírio. Com o tempo, diminui o ritmo. Dentre as várias questões, essa era uma delas.
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Estou contando toda essas minhas histórias, porque elas vieram à mente na leitura deste livro de Eliane Brum. Sem sombra de dúvidas, a obra representou a redescoberta pelo gosto da escrita, do cotidiano, do esforço pela individualização dos sujeitos. Emoção, razão, sensibilidade em cada linha e nas entrelinhas. Impressionou-me a forma como Eliane organiza as histórias pra lermos o caos. Explica a vida nas frestas da rotina dessa massa que se torna a gente. Eleva ao extraordinário aquilo que nosso olhar capta como ordinário.
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Na Folha, o que me chamava a atenção era o que tinha além da notícia. Era raríssimo ler a antinotícia. Descobri agora com Eliane que era isso que queria. A não ser uma coluna marcante, uma notinha da Ilustrada que falava de um jogo de futebol televisionado, uma nota de três parágrafos extremamente bem escrita e cadenciada sobre a frustração do colunista com algo que não fora exibido, nada marcou-me nas leituras daquele tempo. Sempre admirei as colunas da jornalista no El País. Sim, era isso que queria, que quero: as entrelinhas. Aquilo que não é captado facilmente pelo olhar. É isso que persigo também enquanto professor.
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?Olhar é um exercício cotidiano de resistência.? (p.188)
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Daí minha profunda admiração por esse livro de crônicas jornalísticas: ela humaniza a massa. Convite para ver a vida em toda sua esplendorosa riqueza. Um exercício profundo de jornalismo. Sem medo de errar, um dos melhores livros que li. Indico demais!
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11º livro lido
20/06/2020
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