Túlio 03/01/2021DecifrandoLiteratura monumental. Exige um bocado do leitor e de sua interpretação mais acertiva.
Sua protagonista, uma jovem herdeira de uma fazenda sulista e escravocrata durante a Guerra da Secessão Americana, denota o caráter e espírito da época. Scarlett O'Hara é mimada, extremamente vaidosa, egoísta, que impõem seus caprichos a tudo e a todos. Enquanto a Guerra é travada em seus momentos mais dramáticos, Scarlett quer apenas gozar a vida, vestir, dançar, divertir-se e amar.
Em minha humilde opinião, este é o ponto alto do livro 1 (estou lendo a edição da Nova Fronteira em 2 volumes). O modo como a autora construiu uma personagem tão pouco comum na literatura universal: Scarlett não tem escrúpulos em expor seu ponto de vista sobre a inutilidade da guerra, o desperdício de recursos, vidas, etc. Seu egoísmo é brilhantemente contrastado o tempo todo por outros personagens ingênuos que se sacrificam pela Causa dos Confederados. Exceto é claro, pelo seu "duplo masculino", Rhet Butler, com quem constantemente está em atrito.
Em contrapartida, Scarlett, por inciativa própria, ou por um série de eventos não planejados demonstra ser uma mulher a frente de seu tempo, autêntica, leal, cheia de fibra e coragem, ao contrário do feminismo de gaveta vigente na sociedade de Atlanta, cidade em que vive por algum tempo.
Essa dualidade da protagonista é a maior riqueza deste livro. Alguém que nutre ideais tão mesquinhos, que na maior parte do tempo enxerga apenas a si mesma. Mas, que em contrapartida, pela força da sua vontade e de seu caráter irredutível, é a única capaz de enfrentar situações adversas com determinação ferrenha e cuidar dos outros.
Scarlett é uma identidade cuja personalidade facilmente será reprovada por muitos leitores. No entanto, é preciso admitir que há um amadurecimento do início para o fim da trama, o que nos faz, de certa forma, sermos indulgentes.
Se estou tendo dificuldade em expor essa personagem, é exatamente por isso. Foi tão bem escrita, e tão bem pensado, que é difícil decifrá-la. Scarlett exibe o mais humano de cada um de nós, virtudes, malefícios, egoísmo, paixão, protecionismo, etc...
Como enredo, aprendi horrores sobre história americana lendo este livro de ficção(!). Acredito que assim como eu, durante e depois da leitura, muitos leitores irão se debruçar para pesquisar detalhes que são mencionados na trama. Margaret Mitchell conseguiu tecer uma personagem tão "perfeita", e que incorpora tão bem o espírito da época, que seus traços, e eventos que é obrigada a atravessar me fez ter a impressão de que em alguns momentos estava lendo uma biografia, e não uma obra de ficção.
Uma última ressalva importante, é que o enredo oferece diversas cenas de abuso e autoritarismo contra os escravos. Como leitores modernos, isso naturalmente nos causa repulsa (esse é o meu sentimento). Mas é preciso ponderação para compreender o personagem e seu tempo. Não estou justificando os abusos. Sou a favor da liberdade da vida independente de qualquer origem. No entanto, é preciso compreender a sociedade que está sendo exposta, e até por isso, existe uma guerra se desenrolando dentro da trama, exatamente por esse ideal libertário! Este livro foi publicado pela primeira vez em 1936. E a sociedade daquele tempo ainda guardava muitos vestígios da escravidão. Mais uma vez repito, não sou a favor disso, mas compreendo porque elementos assim surgem na trama.
Esse constante atrito entre egoísmo e altruísmo, e o modo como o enredo foi tão bem costurado a história americana são, na minha humilde opinião, o que faz esse livro habitar o cânone da literatura norte americana.