Geovane 27/05/2024Perder-se é um achar-se perigoso------ A paixão segundo G.H. é o segundo livro que leio da Clarice, e que grata surpresa foi viajar nessa história lisérgica sobre baratas(?) e socialites.
G.H é uma socialite de meia-idade que, após demitir a empregada, vai visitar o quartinho da mesma, em uma manhã de domingo. A partir disso, somos convidados a entrar no fluxo de pensamentos da personagem principal.
Que grande delírio!
Sim, pelo menos para mim, a história, a partir de então, parece se tratar de um delírio de morte da personagem principal, com pensamentos desconexos e acelerados, assim como são os pensamentos.
Em uma escrita carregada de simbologia e carga pessoal, Clarice, por meio de G.H, nos faz pensar sobre a falta de sentido da nossa (Gênero Humano?) existência.
''Sucumbirei à necessidade de forma que vem de meu pavor de ficar indelimitada”.
Ao se deparar com uma puta de uma baratona no quarto da empregada, a véia entra em parafuso. Mas não se trata simplesmente de um medo comum de barata (na verdade, nem se trata de uma barata) o que se passa com G.H é o pavor e atração que o desconhecido nos causa.
O chamado do vazio
O chamado do vazio é aquele desejo que muitos têm de pular de um lugar alto, ao olhar para baixo, ou de gritar em uma reunião e cometer um ultraje contra o chefe, ou até mesmo sair correndo pelados pela igreja (isso foi muito específico?)
Ao se defrontar com algo abjeto como a barata, G.H. se defronta com o chamado do vazio, confrontando o significado das normas sociais as quais sempre seguira, e tendo a apavorante certeza de que essas normas nada passam de coisas da nossa imaginação, como uma cortina que, quando aberta, revela um vazio tal qual o espaço, as baratas, os homens, os fetos e qualquer partícula subatômica.
“Eu estava sendo levada pelo demoníaco.
Pois o inexpressivo é diabólico. Se a pessoa não estiver comprometida com a esperança, vive o demoníaco. Se a pessoa tiver coragem de largar os sentimentos, descobre a ampla vida de um silêncio extremamente ocupado, o mesmo que existe na barata, o mesmo nos astros, o mesmo em sí próprio – o demoníaco é antes de tudo humano.”
Enfrentar a barata é enfrentar o apavorante vazio da existência. No começo do livro, ela nos diz que sempre pensara sobre esse grande momento diante do desconhecido, e que ela provavelmente seguraria uma “mão imaginária”, até chegar o momento em que ela teria que largar essa mão, atravessar o portal e “caminhar cega pelo deserto”.
“Estou tão assustada que só poderei aceitar que me perdi se imaginar que alguém me está dando a mão”.
Mas, dado o momento, G.H não se vê com outra escolha a não ser enfrentar, largar qualquer muleta. E essa experiência é para G.H algo como o sacramento da comunhão, uma comunhão com o desconhecido.
Comer a barata é um ato extremamente nojento para a maioria das pessoas. A repulsa de comer uma barata melequenta é a mesma repulsa que seres humanos têm ao pensar na morte. Sobre isso, G.H usa a figura de imagem de comer o inseto como uma comunhão entre o ser e o nada.
“Não o ato máximo, como antes eu pensara, mas o ato ínfimo que sempre me havia faltado”. Pois o “Eu” é “apenas um dos espasmos instantâneos do mundo. Minha vida não tem sentido apenas humano, é muito maior– é tão maior que, em relação ao humano, não tem sentido”.
O que apavora a todos, é representado por G.H ao comer a barata - em um primeiro momento, uma experiência escatológica, mas, após o desapego das pré-concepções sobre o desconhecido, uma experiência orgástica de comunhão com o universo e sua total falta de sentido.
Minha experiência ao ler A paixão segundo G.H passou bem longe de ser um passeio no parque. Para dizer a verdade, foi algo como cogitar comer uma barata: ainda rejeito a ideia com todas as minhas forças, mas ela está lá na frente me espreitando. ------