Arthur 20/07/2017A asa esquerda esquerda do anjo: o parto como expurgação e reivindicação dos desejos femininosA obra de Lya Luft corresponde a um espaço ficcional que “contempla o universo feminino, enfocando questões ligadas à sexualidade, repressão familiar e traumas psíquicos vivenciados, inicialmente, por uma legião de 'mulheres perdedoras'”. Por meio de imagens lúdicas e grotescas (conforme Maria Osana de Medeiros Costa), a autora gaúcha desfia denúncias e questionamentos acerca da condição feminina: a repressão imposta pela cultura, o que leva ao silenciamento e à passividade. Entretanto, a repressão não indica que, por baixo da mordaça e da reclusão, não haja um desejo latente. As mulheres luftianas, apesar de submissas à ordem hegemônica, alimentam dentro de si – ainda que no inconsciente – fantasias de rompimento das interdições.
O instrumento de rompimento da ordem, ainda que delineado a partir de diferentes metáforas, diz respeito sempre à linguagem. A manifestação verbal surge como forma de questionamento da própria condição. A imagem dessa voz que decide ecoar em meio ao silêncio repressivo transfigura-se no ato da escrita. Isso conduz, portanto, à reflexão sobre sobre a importância da literatura feminina preocupada com a imagem da mulher e, mais que isso, com a reestruturação dessa imagem.
A asa esquerda do anjo, publicado em 1981, apresenta uma mulher em seu quarto, grávida de um verme e pronta a pari-lo. “Sozinha, tranquila e forte”, entre flashes memorialísticos, ela sofre as dores do parto do seu “invasor”, “uma coisa lustrosa, escorregadia das suas umidades ocultas”, que revira-se no “bafo de suas entranhas”, forcejando para ser expelido.
Seguindo a metáfora do parto, Luft estabelece um paralelo com a dificuldade do confronto das interdições há tanto tempo incrustadas. Quebrar tabus é rever valores assimilados. Corporificado na simbologia do verme enrodilhado no ventre que forceja para ser expelido, o desejo feminino de autonomia vem à tona pela boca. A linguagem é a maneira de estruturação e de exteriorização dos ímpetos silenciados. Ainda que ela não dê conta do turbilhão que revolve a mulher, é por meio dela que as muitas águas ecoam como uma voz.