Procyon 30/04/2023
O beijo no asfalto ? comentário
?Beijo nos afalto? faz parte das tragédias cariocas (ou de costumes) de Nelson Rodrigues, obsessivo pelos fatos escabroso, faz um retrato da formação do subúrbio da cidade. Há um tom farsesco, em que todos os personagens tomam suas atitudes baseadas em motivos obscuros e ordinários (o pai que mente por nutrir desejo pela filha; a imprensa e a polícia, por poder político e econômico; até mesmo Dália, que só viria a acreditar na farsa no final da história, só crê em Arandir inicialmente pelo desejo que sente pelo cunhado e pela disputa com irmã).
Além do paralelo com as narrativas kafkianas, porém, num estilo tipicamente rodriguiano, onde o protagonista não possui alternativa nem rota de escape ? em que os eventos ocorrem contra a sua vontade, e o clímax vem como uma avalanche, dada desde o princípio da narrativa ?, o livro traz as peculiaridades estilísticas e temáticas do autor, que aqui estão mais fervorosas. O moralismo dominante, as diferenças de classe e a hipocrisia dos costumes (bem a homofobia) são extenuados através de uma visão bastante pessimista do ser humano. Nelson aborda a corrupção policial, a falta de ética do jornalismo, o moralismo ? disfarçado ou não ? das personagens (que afirmam defender certos valores, mas agem de acordo com seus impulsos mais primitivos e inconfessáveis).
Ademais, o autor retrata uma sociedade entregue a um processo descontrolado de modernização característico da época que não se adapta (há sempre um contraste entre a modernização que entra em conflito com os valores antiquados, provincianos, das personagens frágeis psicologicamente). A fácil propagação de boatos, fofocas e versões alternativas de uma história (que na contemporaneidade tomou os rumos por ?fake news?), que demonstra a força das manchetes na opinião pública, é alvo crítico do escritor, que emprega aqui uma linguagem jornalística, de diálogos truncados e falas incompletas ? o que traz certa agilidade na narrativa. Nelson perpassa a questão do ciúme, do incesto, do impulso à traição, da fraqueza e da canalhice humanas, tudo situado num clima sempre farsesco, de insegurança e morte.
Essa fase última de Nelson ? tão negligenciada pela ?critica especializada? ?, das ?tragédias de costumes?, me remetem a uma coisa que estou embrenhado até os dentes: a solidão ? de personagens que estão isolados em seus próprios microcosmos; onde as relações entre as pessoas transmitem apenas a sensação de incomunicabilidade, cinismo e vileza humanas. Se em algumas peças míticas de Nelson falhava pela pretensão helenística, aqui ele acerta em cheio ao escolher a simplicidade, e fazer disso tanto uma tragédia quanto uma poética maior do que fez em seu período mítico. Nelson Rodrigues é um grande escritor porque consegue ser universal e atemporal.