Eric Vinicius 18/01/2022
Uma elevação
Não é fácil ler Borges.
Mas, ah, disso todo mundo - ou ao menos quem se aproxima de forma menos desavisada da obra do argentino - já sabe.
Então, não convém que se ressalve (apenas) o caráter intrincado de seus textos.
É verdade que, em não poucos momentos, fiquei me perguntando o porquê de tanta profusão - na forma e no conteúdo. Embora alguns de seus contos sejam bastante curtos, a extensa variedade de referências a eventos, personalidades e produções que não fazem parte da corrente dominante (nem tampouco da minha bagagem pessoal), com uso de um léxico soberbo e exploração diversificada de recursos da linguagem, confere à obra um aspecto denso, místico, quase inacessível. Borges obriga que seu leitor, ativo, seja também um pesquisador paciente e determinado. Sem essa busca, as críticas (sarcásticas e engraçadíssimas) do narrador ao extravagante Carlos Argentino Daneri, no conto que encerra o livro e lhe confere o título, bem que, de modo tentador, poderiam se aplicar ao próprio autor.
Porém, há uma linha tênue (e nem sempre bem definida) que separa o pedantismo da erudição.
Com o tempo, percebe-se que, na sinuosa escrita borgeana, poucas palavras aparecem por acaso. Muitos detalhes que se assemelham a distrações loquazes acabam se revelando como luzes que conduzem o leitor. E quando se encontra, a partir disso, o caminho de saída de seus labirintos, o destino parece legitimar a jornada fantástica, ao se chegar ao inefável. É assim em contos como o próprio "O Aleph" (meu favorito, da coletânea), "História do guerreiro e da cativa", "Emma Zunz", "A outra morte", "Deutsches Requiem", "A busca de Averróis" e "Abenjacan, o Bokari, morto em seu labirinto", os quais destaco neste conjunto.
Algumas das marcas que notei em "Ficções" são, aqui, acentuadas. Surpreso por acreditar que já estaria precavido, considerei a leitura ainda mais difícil, todavia, sem uma chave inicial como a premissa, lá, de um universo deliberadamente criado pelo autor. Fiquei impressionado com a ideia de que "O Aleph" pode trazer mais fantasia que a própria ficção. Avalio, dessa maneira, especialmente a leigos como eu, ser imprescindível estar acompanhado de um bom guia, para maior aproveitamento do livro.
Nele, Borges, mais uma vez, parece arrogar para si a missão de descrever o indizível. Sua crônica é do absoluto. Os ensaios, abertos.
Não é de se estranhar, portanto, seu estilo.
Na desconstrução que propõe sobre o tempo, o universo e a personalidade, repetem-se, simbolicamente, figuras como labirintos, livros, espelhos, losangos, espadas e simulacros. São temas de sua abordagem a morte, o duplo, os sonhos, o infinito (e o eterno), Deus (e a religião) e a filosofia. Motes retratados em histórias que, aqui, homenageiam clássicos como "A Odisseia", "As mil e uma noites", "A Divina Comédia" e - não poderia faltar o toque argentino - "Martín Fierro"; com personagens de matizes heterogêneos, como hindus, judeus, árabes, gaúchos, índios e europeus, cristãos e muçulmanos, deuses, heróis e mortais; que vivem, morrem e se eternizam no passado, no (então) presente e no futuro - no tempo e fora dele; ambientados no deserto e em porões, em mesquitas, em bares, nos pampas, no Olimpo.
A universalidade da tratativa, portanto, demanda um nível superior de abstração e justifica o formato típico da pena de Borges. Seria de uma presunção imperdoável supor que um escritor de repertório tão enciclopédico como o antigo diretor da Biblioteca Nacional de Buenos Aires fosse um impostor. Não se pode culpar um sábio pelo mérito de seu conhecimento - por mais incognoscível com que ele se apresente.
Mais do que isso, entretanto, sua obra instigante é um bálsamo que permite transcender - o que vem ser bastante convidativo, em uma realidade tão dura. Como um subsídio para reinterpretação do mundo, da vida, da própria existência. O absurdo como método de ressignificação, que amplia os horizontes.
Curiosamente, ao fim do último conto, o narrador parece, com relutância, se curvar à aparente empáfia do meio-irmão de Beatriz Viterbo. Uma resignação que reconhece o brilhantismo de sua obra totalizante.
Assim igualmente me inclino, por derradeiro, ainda que exausto, à grandiosidade de "O Aleph".
Na experiência espiritual, não é preciso compreender tudo para se sentir o todo.
Borges me leva a reverenciá-lo, humildemente, reconhecendo sua capacidade distinta de permitir essa mesma elevação.