Craotchky 30/09/2022Haia, a estrangeira- Clarice, se você pudesse roubar alguma coisa, o que roubaria?
- Roubaria gente, pessoas, companhia.
(1965, entrevista. Clarice Lispector, Jóia, n. 141.)
De forma semelhante ao que acontece na biografia de Leonardo, onde a proposta do autor parece ser, além de trazer dados históricos-biográficos, fazer análises das diversas obras do mestre, assim Nádia faz aqui: além das informações biográficas ela faz análises literárias das produções da autora, com um objetivo bem específico: desvendar, a partir delas, a pessoa por trás de tais produções. No Prefácio Nádia elucida sua proposta ao explicar que seu trabalho centra-se em abordagens críticas e
"[...]detém-se em certos dados de caráter autobiográfico, desde que tenham eles ligação mais direta com a produção literária, no sentido de que possam contribuir para uma contextualização."
O texto acaba sendo bastante similar aos moldes de abordagem clariceanos. Aquilo que Clarice faz com suas personagens, Nádia faz com ela: busca sondar mais a pessoalidade, a intimidade, a interioridade, o subjetivo de Clarice, em detrimento de relatar as ações e os eventos da vida dela. Em outras palavras, o texto tenta entender e esboçar quem era Clarice Lispector, a partir de seus próprios escritos (cartas, crônicas, contos, romances...). O resultado é uma obra bastante intimista.
A minha impressão geral é a de que Clarice tinha uma forma muito particular de solidão: não a solidão de quem não tenha relações e contatos, mas a solidão de quem não consegue se conectar profundamente com seres semelhantes por não os encontrar. Ao que parece ela era tão estrangeira que não encontrava pares em lugar nenhum; não se encaixava no mundo; parecia constantemente neblinada; ela era uma sensibilidade transbordante num multidão de engessados. Tinha dificuldades de estabelecer relações por exigir das pessoas tanta profundidade quanto só ela poderia oferecer. Num mundo que cada vez mais caminhava para a liquidez de Bauman, raras eram as pessoas capazes de se dedicar com algo além da superficialidade. E Clarice exigia a alma.
CURIOSIDADES:
📌Haia. Este é o nome original de Clarice.
📌Não há exatidão quanto a data de nascimento de Clarice; sequer se sabe ao certo o ano no qual ela nasceu! A própria Clarice foi contraditória ao registrar diversos anos como sendo o de seu nascimento: 1921, 1926, 1927... Inclusive não consta data de nascimento no túmulo da autora, apenas a data do falecimento.
📌A língua presa de Clarice não era um sotaque ou maneirismo dela, mas uma consequência de um defeito fisiológico mesmo. Parece que ela até poderia ter feito uma intervenção cirúrgica para a correção do problema, mas simplesmente não quis.
📌Clarice teve alguns bichos durante a vida. Entre eles um cão chamado Ulisses. Reza a lenda que o Ulisses era um grande fumante. Por vezes ela chamava esse cão de "Efeméride".
📌Alguns livros da autora chegaram a ter títulos diferentes em versões iniciais: A maça no escuro, por exemplo se chamava "A veia no pulso"; Água viva chegou a ser "Atrás do pensamento: Monólogo com a vida"; e Um sopro de vida era simplesmente "Pulsações". (Bastante bonito esse último.)