Carina 11/09/2013
A luxúria santificada
João Ubaldo Ribeiro escreve o livro como se fosse outra pessoa. Mais especificamente: uma mulher, baiana, 3ª idade, que viveu uma vida dedicada à luxúria e que faz um relato picante de suas experiências em fitas, as quais pede que sejam transcritas pelo escritor.
Talvez assumindo uma máscara (tão criticada pela sua protagonista, avessa aos disfarces e hipocrisias humanos) com a ideia de que o relato não é genuinamente dele, o autor se entrega a uma narrativa sem limites no campo sexual. Incesto, homossexualidade, experiências com animais, drogas, posições diversas – tudo não só é aceito como é santificado. Crente em Deus, sua personagem não tem dúvida de que ajudou muita gente; foi uma alma caritativa que ensinou a muitos os segredos da alcova.
Entre delícias no enredo, João Ubaldo insere o contexto de uma sociedade pervertida que não quer se assumir. Desta forma, seu livro, muito mais do que pura sacanagem (e das boas), é também uma análise sociologicamente mordaz.
Trechos:
Os católicos são politeístas. Desculpe, se você é católico.
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Além de tudo, não há nada de mais em ser politeísta, de certa forma é muito melhor do que ficar acreditando somente num Deus impossível de compreender.
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Há exigência de passaporte para as palavras passarem do falado ao escrito.
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Até hoje me espanta essa himenolatria.
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A gente pensa que lembra como eram as coisas, mas não lembra, há sempre filtros, filtros da memória, filtros das neuroses, filtros do voluntarismo, tudo quanto é tipo de filtro.
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Hoje, a erudição acabou, a memória é a dos sistemas de armazenamento eletrônico.
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Quer dizer, eu ainda padeço, embora me gabe de não padecer, da relação ritualística que o babaca do ser humano mantém com a palavra escrita. Terá sido por isso que a escrita era inicialmente privilégio de sacerdotes e depois de monges? Ou por causa disso existe essa reverência cretina? Não sei, já falei nisto antes, mas não me canso de falar. Chega ao ponto de muitos débeis mentais se orgulharem de "falar como se escreve", como se a grafia não fosse uma tentativa muito defeituosa de engessar as palavras em símbolos metidos a fonéticos, como se se pudesse pedir a um chinês para falar como se escreve, como se a escrita tivesse precedido a fala. Ouço gente pronunciando os emes finais, como se esta merda desta língua fosse inglês. Umaúm, dizem eles, e não apenas nasalando o som do u, em "um-a-um". Se fosse assim, "um alho" era a mesma coisa que "um malho", "um olho", "um molho", e a língua ficaria inviável. Outro abléptico que eu conheço ─ só quem estudou Medicina Legal é que sabe estas palavras, quem quiser que vá ao dicionário ─ pronuncia a palavra "muito" como se escreve, ou seja, "múito", sem nasalação do u. Ai! Realmente, somos uma espécie muito atrasada e só faltamos bater a testa no chão para coisas a que não daríamos a mínima importância se fossem somente faladas. Estão escritas, assumem sacralidade, tanto assim que, como eu também já disse, certas palavras nunca adquiriram passaporte para a escrita e, quando conseguem penetrar pela mão de algum mártir, são logo deportadas de volta, condenadas à clandestinidade ou confinadas em guetos, como fazem com gente. Ridículo, patético, mas inelutável, as palavras são de fato um mistério, um dia eu escrevo um livro louco, só quero escrever um livro louco, em que as palavras possam detonar, explodir em todos os tipos de significados, provocar todo tipo de reação. Eu queria libertar todas as palavras, eu sei que isso parece veadagem de poetastro juvenil, mas que é que eu posso fazer, é o que eu sinto, eu queria libertar as palavras. Idiota, você também. Acaba delírio lingüistico, fecha parêntese.
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Vittorio Gassman tinha razão, numa entrevista que eu vi na tevê: a vida devia ser duas; uma para ensaiar, outra para viver a sério. Quando se aprende alguma coisa, está na hora de ir.
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A vida é uma mentira impenitente, renitente e resistente.
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A paixão é simplesmente a tesão formatada.