Fabio Shiva 07/03/2022
A tragédia do Rei Ricardo III não deveria ser um manual do governo
Li pela primeira vez essa obra-prima da literatura mundial em 1999, no original em inglês acrescido de ricas notas históricas que baixei da Internet. Por essa época eu estava lendo Shakespeare com o intuito específico de colher referências (e inspiração) para as letras da ópera rock “VIDA – The Play of Change”, da banda Imago Mortis (https://www.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_k74iGArOs3L8rNNxGpll976kufUVjE8EQ). E dessa leitura saíram ao menos duas citações diretas na música “Insominia” (https://youtu.be/w6YVeR47SP0). Uma é a sensacional frase de abertura da peça:
“Now is the winter of our discontent
Made glorious summer by this sun of York”
[“Agora é o inverno de nosso descontentamento,
Tornado em glorioso verão por este sol de York.”]
E a outra é uma das frases mais impactantes do Bardo:
“I'll join with black despair against my soul,
And to myself become an enemy.”
[“Eu me unirei ao negro desespero contra a minha alma,
E para mim mesma me tornarei uma inimiga.”]
Com essa fala, que é pronunciada pela Rainha Elizabeth ao saber da morte de seu marido, Shakespeare expressa em vívidas cores toda a dor do luto. Nessa única frase, que não cessa de me emocionar, diviso toda a magia e todo o poder da Literatura. Ao traduzir o sofrimento humano na linguagem da Beleza, a Arte ressignifica e transcende o sofrimento, conferindo-lhe sentido.
Em 2010, tive uma segunda oportunidade de ler “Ricardo III”, na tradução para o português de Carlos Alberto Nunes. Dessa vez, o foco de minha atenção concentrou-se na história, mais especificamente na magnífica articulação entre ação e consequência que é delineada ao longo da peça, em uma das melhores demonstrações da Lei do Karma na Literatura (https://comunidaderesenhasliterarias.blogspot.com/2012/09/a-tragedia-do-rei-ricardo-iii-william.html).
E agora, em 2022, decidido a mergulhar novamente nessas salutares águas de Shakespeare, voltei a ler a edição em inglês com os comentários históricos. Por um capricho simétrico, vou destacar os três principais aprendizados que tive nessa terceira leitura de “Ricardo III”:
1) Um grande vilão na Literatura, um homem de seu tempo na vida real
Todas as notas históricas dessa edição on-line (da qual eu havia felizmente guardado as impressões, pois não mais encontrei na Internet) foram baseadas no livro “Richard III”, de Charles Ross. Essas notas reiteram que a sanguinária escalada ao poder de Ricardo III é considerada mais ou menos dentro dos padrões do jogo político da época (Século XV): ele foi acusado do assassinato do irmão, dos dois sobrinhos (ainda crianças) e da própria esposa, e mandou executar vários antigos ex-aliados, na tentativa de assegurar sua ascensão ao trono da Inglaterra. Mas de nada adiantou sujar tanto as mãos de sangue: o reinado de Ricardo III durou pouco e ele terminou odiado pelo povo e por seus pares, sendo morto na batalha em que Shakespeare o fez dizer, de forma tão emblemática: “Meu reino por um cavalo!”
2) “Show, don’t tell”… unless you are Shakespeare!
Percebi somente agora um recurso que Shakespeare parece usar com frequência: seus personagens são dotados de uma incomum capacidade de autoanálise, descrevendo suas emoções e conflitos internos de forma exuberante. Isso contraria diretamente uma das regras douradas da escrita, que diz: “Show, don’t tell” [“Mostre, não conte”]. Essa regra, que faz todo sentido para os mortais comuns, parece não se aplicar no caso da genialidade ímpar de Shakespeare. Só para dar um exemplo: o escritor não deve “contar” que seu personagem está triste, com medo e remorso, mas “mostrar” por meio de cenas e ações que esse é o seu estado emocional. A não ser que o escritor seja W.S., que faz seu Ricardo dizer, pouco antes da batalha final:
“O coward conscience, how dost thou afflict me!”
[“Ó consciência covarde, como me afliges!”]
3) A tragédia do Rei Ricardo III não deveria ser usada como manual de campanha do governo
Mas o que me deixou realmente estupefato foi acompanhar a maquiavélica estratégia de Ricardo para tomar o poder, lendo isso agora, em 2022, à luz de tantos absurdos que temos testemunhado no cenário político nacional e mundial. Vou tentar resumir as macabras táticas utilizadas tanto no século XV quanto no XXI:
- Fazer o mal e em seguida acusar os adversários, jogando neles a culpa pelo malfeito.
- Criar alianças para espalhar mentiras e calúnias contra um inimigo em comum, para depois voltar essas mesmas calúnias contra os antigos aliados.
- Aparecer publicamente ao lado de líderes religiosos, de preferência com uma Bíblia debaixo do braço (“o verdadeiro ornamento para se conhecer um homem santo”) e citar versículos a torto e a direito, para dessa forma “cobrir a infâmia explícita com farrapos das Sagradas Escrituras e ficar parecido com um santo quando se está mais bancando o diabo.”
Tudo considerado, não sei o que causa mais espanto, se é o fato de Shakespeare ter denunciado a artimanha já há tanto tempo ou se é esse tipo de esse tipo de golpe fuleiro e mal-ajambrado continuar funcionando tantos séculos depois. Só posso desejar que o paralelismo entre a Literatura do passado e a Realidade de hoje siga até o amargo fim, pois anseio por ouvir o brado fanhoso ecoando nas redes sociais: “Meu reino por um gado, tá ok?”
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