Marc 13/04/2024
Kawabata é um escritor que fala muito do tempo. Em alguns de seus livros, o passado retorna, porque deixou mágoas e dúvidas, imensos desertos de dor e solidão nos personagens e o reencontro traz um gosto amargo — mesmo que alguns esperem poder retomar e criar uma nova vida a partir daí. É difícil descrever, porque a escrita é muito complexa, sendo sutil e rica, muitas vezes sugerindo ao invés de apontar e quando percebemos, é como uma porta que se abre para um imenso pátio, mas que nada no restante da construção sugeria existir. Assim como o tempo aquieta as paixões, afasta os amantes, também parece ter a qualidade de reavivar os ressentimentos. É como se eles não passassem, apenas ficassem suspensos aguardando o momento de retornar com toda a força. Gosto muito de uma frase do filme “Magnólia”, que se encaixa muito bem aqui: nós superamos o passado, mas ele não nos supera.
Mas a vida não deixa apenas ressentimentos. E aqui, embora exista um amargor ao olhar a vida, ou melhor, ao sentir que a vida já não tem o mesmo colorido (o que causa tristeza), o tempo é sentido como aquele que tira, que afasta. Já não se é mais como antes e mesmo que a perda da virilidade seja sentida, é sobre o futuro que a preocupação de Eguchi se projeta. O passado serve como contraponto ao futuro, surgindo cada vez mais luminoso à medida que ele só enxerga trevas diante de si. E não são trevas comuns de não se saber o que tem pela frente, são trevas porque não lhe restam esperanças. É o tempo que lhe diz que está acabando, que suas forças jamais retornarão.
Incrível que não se note a referência ao conto de fadas da Bela Adormecida. Enquanto este último coloca a realização do amor através da força que o masculino desperta na mulher, literalmente tirando-a do sono, trazendo-a à vida concreta, aqui elas não são modificadas pela velhice, pois ela não tem mais a virilidade e o vigor. É como se aquilo que os homens tem a oferecer, toda a força que protege a mulher, que a retira do torpor de uma vida que não é plena, não pudesse ser satisfeito e não se realizasse. As mulheres, mesmo belas, não conseguem ser amadas e desejadas, pois essa fase da vida já passou para os homens que frequentam aquele lugar. Elas ficam ali, esperando eternamente, uma beleza que não pode ser plena, que não pode fazer aquilo que as mulheres podem fazer e os homens não. Literalmente, essas jovens não podem ser mães, pois os homens que as tocam não sentem real desejo e não são mais capazes de engravida-las. Por um lado, o desejo de retomar — mas sem sucesso — o poder da juventude e, por outro, a beleza que jamais leva à realização plena do feminino. Aquela casa encena possibilidades, mas elas jamais se realizam.
No conto de fadas, a Bela Adormecida se torna fértil, se torna mulher e cai na armadilha da bruxa (talvez seja um resquício dessa história a mulher que cuida da recepção para os homens velhos e adormece as jovens que ficam no quarto esperando, inconscientes). O que a bruxa deseja é que ela jamais acorde, perca seu período de fertilidade e se torne como ela, ressentida em relação à vida. Mas, numa leitura mais simbólica, é como se as mulheres estivessem durante sua adolescência, num período de latência, projetando o que virá mais tarde e será a realização de sua vida, que é a gravidez e o cuidado dos filhos. Mas somente um homem pode levar a esse estágio. Sem o casamento, a mulher jamais vai ser completa. É isso que o conto de fadas mostra, o simples ciclo da vida de uma mulher.
Aqui, no entanto, isso não pode se realizar. Ou melhor, seria uma espécie de brecha na vida dessas jovens, onde elas não apenas não esperam por ninguém, como não esperam que possa aparecer um homem naquele local que as retire desse período. As jovens que ficam adormecidas nos quartos não podem reagir, não sabem quem são os homens que estiveram com elas durante a noite e não sabem o que aconteceu. Tudo que lhes interessa, Eguchi pensa, é o dinheiro. Seria uma maneira de dizer que em qualquer estágio da vida é fácil se perder. Isso é tão verdadeiro que Eguchi começa a lembrar de mulheres do passado e o amor parece estar ausente de todas as situações. Mesmo ao lembrar dos momentos finais com a mãe, ainda parece ausente o amor. Essa lembrança o incomoda, porque ao pensar nas mulheres de sua vida, a mãe aparece como a primeira. Não porque tenha feito sexo com ela, mas porque foi a primeira vez que tomou conhecimento de uma mulher em sua vida.
Todas as lembranças parecem falhas sob esse ponto de vista. Eguchi, por sua vez, não parece atentar para isso. É como se ele estivesse distante em todos os momentos, compelido por aquilo que se esperava dele, não por sua personalidade. Olhar o passado sem se reconhecer, sem conseguir se emocionar. Nunca houve real envolvimento naqueles momentos que vai lembrando. E nem existe aqui, evidentemente. Pois não há como, mesmo que ele toque a garota, a beije, nada do que faça poderá gerar envolvimento. Assim, no passado — onde ele podia fazer sexo com as mulheres —, ou hoje, o distanciamento em relação a todas as mulheres continua. Essa é a ironia da situação em que ele está agora. E o final do livro, que me desagradou bastante, é uma prova dessa falta de relação, de laços.
Às vezes, esse tempo que transforma ou reaviva sentimentos, traz ainda o esclarecimento. Não podemos dizer que seja o caso. Eguchi não parece ter compreensão do que realmente foi sua vida. Mas está lá, basta prestar um pouco de atenção em cada lembrança para chegar a essa conclusão. De modo que o livro deixa um sentimento bem ruim, não apenas pelo final, mas porque descobrimos que o tempo não o modificou, que a esperada maturidade, a sabedoria que deveria vir com o tempo e que seria alcançada na velhice, jamais chegará. Ele é apenas um homem que lamenta não ter mais o vigor do passado, não poder mais ter a mulher que desejar e nada do que viveu lhe ensinou coisa alguma. O homem que um dia retirou uma mulher, mãe de suas filhas, do período de latência da juventude e a levou à plenitude de sua vida, simplesmente não acompanhou o processo, não o fez com objetivo algum, apenas buscava satisfação imediata de seus desejos, nada mais.
O pior que poderia acontecer a uma pessoa ao chegar à velhice seria não ter aprendido nada, não ter sabedoria sobre a vida, não ter sido modificado pelas incontáveis situações que passou ao longo dos anos. Ainda desejar ser um adolescente só para poder sentir prazer.