Lucas 03/10/2019
O passado versus o presente/futuro: Um romance da vida, simplesmente isso
Ivan Sergeiévitch Turguêniev (1818-1883) foi um dos maiores símbolos da era de ouro da literatura russa. Mais um contista que um romancista propriamente dito (Memórias de um Caçador, obra de contos de 1852 é o melhor exemplo disso, e introduziu o autor ao meio literário da época), ele, felizmente, condensou num breve livro de pouco mais de duzentas páginas toda a sua genialidade como escritor em Pais e Filhos, romance de 1862.
A década de 1860 foi particularmente agitada em toda a Rússia, marcada por grandes reformas propostas pelo czar Alexandre II (que governou a nação de 1855 até 1881). A maior delas foi a decretação em 1861 do fim do regime de servidão, um dos sustentáculos da sociedade russa desde o século XVII. É importante que isso (a servidão) não se confunda com a escravidão, enraizada no íntimo do Ocidente. Na Rússia, os servos (ou mujiques) eram obrigados a manterem-se nas terras, sem as poder possuir e os donos dessas terras podiam vender as propriedades em que os mujiques estavam situados com os próprios inclusos. Obviamente que havia castigos cruéis e liberdades ceifadas, mas também existiam alguns limites, como a impossibilidade legal dos donos das terras assassinarem por qualquer motivo algum de seus servos.
Todavia, o foco aqui não é discutir sobre essas diferenças por vezes muito obscuras, mas sim usar desse elemento do fim do regime como ponto de partida para a descrição geral da sociedade russa da época. Por mais que houvesse as já citadas reformas estruturais progressistas, havia também uma sensação geral de desânimo, de incertezas frente a esse novo horizonte. A própria questão do fim da servidão alimentava isso. Se hoje, quase 160 anos depois daquela época parece muito difícil imaginar que elementos como libertação de servos ou escravos poderiam gerar algum tipo de polêmica ou contrariedade, isso era sim um problema naquele tempo. Isso porque o fim do regime, feito sem amparo ou instrução para os mujiques, gerou algumas calamidades localizadas, como rebeliões, discordâncias, questões familiares, etc., que demoraram muitas décadas para deixarem de ser efetivamente um problema, mas que se tornaram um elemento de fortalecimento social da Rússia como nação.
Voltando a Pais e Filhos (cujas linhas permitem que o leitor divague a respeito dos temas que ele trata), Turguêniev montou sua narrativa como uma resposta aos seus críticos, que o tratavam como um "ocidental", incapaz de escrever sobre o seu país. Assim, ao analisar esse contexto da época, o autor trouxe para o âmbito da literatura a questão do niilismo, em voga entre os jovens da década de 1860. O nome do romance visa justamente representar a contraposição entre o velho e o novo, entre a geração mais antiga (que viveu ou sofreu influência das atrocidades cometidas pela invasão de Napoleão Bonaparte à Rússia em 1812), apegada a valores tradicionais como fé e família e a geração mais nova, que se baseava no empirismo puro, ceticismo contra tudo que não pudesse ser provado cientificamente e uma desvinculação a hierarquias. Aliás, esta última era a principal característica do niilismo, a rejeição a autoridades, sejam elas morais, familiares ou religiosas.
Nesse sentido, Turguêniev explora este choque entre mais velhos x mais jovens sob dois ângulos diferentes, e que para que eles sejam explicados, podem ser aqui citados (finalmente) os personagens principais da obra.
Por mais que as sinopses sugerem algo diferente, é o médico Evguêni Bazárov o protagonista, símbolo supremo do niilismo. A narrativa inicia-se com Bazárov acompanhando seu amigo, Arkádi Kirsánov (personagem principal das sinopses) em visita a Marino, "feudo" do pai de Arkádi, Nikolai, que tinha um irmão, Pável, que ajudava a administrar a propriedade. De cara surgem reflexões a respeito do já mencionado fim do regime de servidão, com Nikolai tendo muitas dificuldades para se adequar a esse novo modelo. Contudo, esta questão está longe de simbolizar o cerne deste círculo narrativo, e isso cabe a Bazárov e o tio de Arkádi, Pável.
Assim, tem-se muitos embates narrativos entre esses dois personagens, que correspondem ao primeiro ângulo de comparação entre mais velhos e jovens: a questão de ideais e formas de pensamento. A visão agrária de Pável, seu apego à arte, ao requinte e à natureza, entrará frontalmente em colisão com os ideais mais práticos e céticos de Bazárov, que, por rejeitar qualquer tipo autoridade, soa presunçoso e até mesmo irritante em momentos pontuais. Apesar disso, nesse círculo da narrativa o foco do autor está mesmo em reforçar a parte prática dos ideais de Bazárov, que serve de convite ao leitor para que ele analise a validade do pensamento niilista, mesmo que na maioria das vezes ele parta de um argumento mesquinho, para dizer o mínimo.
Arkádi também é um niilista, mais por influência do seu amigo e mentor do que por convicções próprias. No geral, é um personagem doce, um pouco ingênuo e que acaba por protagonizar os caminhos que conduzem a narrativa a outros círculos. Com o passar das páginas, surge Anna Odíntsova, viúva, que exercerá grande influência sob Bazárov. Aqui, o niilista se verá numa situação contraditória em termos de ideais, não cabendo maiores revelações. Importante citar, contudo, o ensinamento disso: por mais cético e empírico que alguém seja, é sempre difícil resistir à emoção. Por mais que Anna Odíntsova seja relevante para a história, o leitor irá senti-la como um elemento que o prepara para o melhor círculo de Pais e Filhos, o da família de Bazárov.
Vassíli Ivánovitch é o pai de Bazárov, ex-médico militar e agora dono de uma pequena propriedade da família no interior (os locais em que se passa a narrativa não são definidos). Bazárov era o filho único dele e de Arina, e ambos, pai e mãe, trazem momentos de sublime beleza emocional. Arkádi, nesse contexto, serve para ilustrar o quanto os pais de Bazárov se orgulhavam do filho e quanto o amavam. Diferentemente do círculo da família de Arkádi, aqui Bazárov adquire um caráter mais desprezível mesmo, como o leitor perceberá. Tem-se aqui o segundo ângulo que a narrativa explora do dualismo entre gerações, este mais baseado nas relações familiares e que fornece a maioria dos momentos inesquecíveis que o livro perpetua.
Ao longo do século XX, provavelmente muito influenciado pela questão da URSS e dos regimes ditatoriais que por lá se instalaram sucessivamente, o Ocidente adquiriu uma visão mais crua, fria, do povo russo. Não é um preconceito, mas é uma imagem pré-concebida que a história foi construindo à percepção de quem não é natural do país. Mas a verdade que Turguêniev mostra (não só ele como seus escritores contemporâneos da Rússia), de uma forma bem singela, lúdica e bela, é a de um povo que sabia como ninguém demonstrar carinho, especialmente nos filhos. De pais que muitas vezes não sabiam se conter para agradar seus rebentos, satisfazer suas vontades, de expor o orgulho que sentiam... Certamente, esses valores devem ter se perdido em parte por lá (isso é universal, o mundo vem se esquecendo de valorizar a família e suas relações internas), mas o escritor reservou muitos momentos marcantes em Pais e Filhos utilizando-se dessa abordagem.
Ponto importante de Pais e Filhos é também a questão do niilismo como um movimento social, que possuía seguidores na Rússia. Inclusive a narrativa não só não causou estardalhaço positivo como gerou críticas das gerações mais novas e mais velhas, o que fez com que Turguêniev perdesse totalmente a vontade de viver por lá (a narrativa explica porque as críticas vieram de ambos os lados). Segundo Vladimir Nabokov (1899-1977), no seu Lições de Literatura Russa (Editora Três Estrelas, 2014), Turguêniev teve uma vida problemática e até vazia: apesar de ser membro da aristocracia rural (em privilegiada situação econômica, portanto), ele não casou, nem teve filhos. Seu grande amor foi uma cantora de ópera casada, e ele passou boa parte da vida vivendo em cidades como Berlim, Londres e Paris. Ainda segundo Nabokov, o autor era muito apegado a imagem pessoal e entrava em conflito literário constante com Fiódor Dostoiévski (1821-1881), que considerava Turguêniev um escritor mais "europeu" do que russo. O que associa e ao mesmo tempo afasta os dois é o niilismo: em Dostoiévski, ele é exposto nas decrepitudes morais, de forma mais crua, mais rebuscada, como uma gangorra para a redenção; Turguêniev trata essa mesma questão de uma forma mais acadêmica e menos psicológica, sempre com um olhar mais voltado para a vivência prática dos seus personagens.
Pais e Filhos é, sem mais delongas, totalmente maravilhoso, com elementos tocantes, muito romance e, acima de tudo, uma infinidade de reflexões advindas do conflito entre gerações, que sempre será um tema atual (as modernidades tecnológicas do século XXI servem como pano de fundo de reflexões similares). De uma forma breve e muito bem escrita (Turguêniev sabia como ninguém na Rússia poetizar a narrativa, por meio de descrições belíssimas da natureza, especialmente), o autor deixou um legado que precisa ser eternamente cultuado pelos seus ensinamentos. Os filhos de hoje serão os pais de amanhã, e ler a obra-prima de Turguêniev traz ao leitor a sensação de que o tempo que faz essa transformação só moldará de verdade o ser humano se ele for vivido em sua plenitude, especialmente nos pequenos acontecimentos que o formam.