Toni 26/08/2019
As guardas de ‘A chegada’, quadrinho do australiano Shaun Tan, trazem vários retratos de passaportes de imigrantes tiradas em Ellis Island, Nova Iorque, entre 1892 e 1954. Cada face ali reinterpretada pelo traço do artista anuncia uma mesma narrativa de provações e privações, ameaça e solidão, desespero e sonho: sem usar uma única palavra, privando-se ele mesmo daquilo que dá identidade a um povo e se configura como possibilidade de diálogo e acesso ao outro, Shaun Tan cria uma síntese da história de refugiados, exilados e perseguidos de todos os tempos, que surpreende pela sensibilidade, atenção ao detalhe e profunda beleza no trato de um tema sombrio.
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O fio narrativo principal, a história de um pai que abandona mulher e filha para tentar a sorte num país distante, faz clara alusão aos fluxos migratórios de estados assolados pela fome, pelo desemprego, ou por condições precárias de sobrevivência, mas Tan consegue dar um passo além ao abordar outras máquinas expulsoras de sujeitos cidadãos, como a assustadora alegoria do terceiro Reich nazista, ou a exploração do trabalho infantil em países do extremo oriente. O mais louvável, no entanto, é a competência com que o autor consegue traduzir em imagens o estranhamento que toma conta de qualquer imigrante ao chegar em um mundo novo: tudo, absolutamente tudo no universo visual de A chegada—o formato dos edifícios, os meios de transporte, as comidas, os animais domésticos, os registros de comunicação—foi composto para que não houvesse nenhuma correspondência com culturas humanas reais; algo como o infamiliar (para ressuscitar Freud) que não é lugar algum, mas todos os lugares. Por meio dessa arte, ele também nos transforma em estrangeiros.
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O resultado é uma viagem ao desconhecido como nenhuma outra, que pode ser lida em 15 minutos ou por horas sem fim. Com muita atenção ao olhar de quem parte, de quem fica, de quem chega a destinos em busca de um futuro possível, Shaun Tan mostra todo o poder que toques, olhares e gestos têm de salvar o mundo, mesmo quando as palavras faltam. Ou, talvez, sobretudo apesar delas.