@fabio_entre.livros 15/10/2015
A sutil psicologia feminina em roupagem romântica
Como leitor declarado de José de Alencar, reconheço sua importância e genialidade imaginativa dentro do Romantismo brasileiro, mas dou predileção aos seus romances urbanos, particularmente os três que compõem os famigerados “perfis femininos”, formados por “Senhora”, “Lucíola” (meu favorito) e “Diva”. Acho fascinante como Alencar consegue ser o expoente máximo da prosa romântica nacional e, ainda assim, conseguir ir além desse movimento através desses três livros, que já apresentam traços pré-realistas, antecedendo características do Realismo, como o primoroso delineamento psicológico das personagens femininas e a diluição de alguns estereótipos românticos.
Dos três, “Diva” foi o último que li e o que notei claramente é que, diferente dos outros dois romances, que possuíam uma temática específica a ser criticada (o casamento como meio de ascensão social em “Senhora” e a prostituição nas altas camadas em “Lucíola”), “Diva” é mais simplista e sua trama é centrada basicamente na psicologia da protagonista, Emília (Mila). A meu ver, “Senhora” e “Lucíola” possuem essa abordagem psicológica mais aprofundada, tanto por causa dos temas criticados quanto pela própria complexidade das histórias, que permitiram um vasto campo para análise. Isso, contudo, não me parece um desmerecimento para “Diva”, pois, se não há a crítica direta e específica, há um caprichoso esboço de tais críticas, feitas de modo sutil, mas nítido em todo o romance. A própria personagem central, Mila, possui características que me fizeram recordar de Aurélia, sobretudo a constante revolta da personagem em relação à hipocrisia social e aos pretendentes que parecem mais interessados nas posses da família dela do que em sua pessoa. Curiosamente, no romance “Senhora”, em certo ponto, há uma interessante referência a “Diva”, quando Alencar discute as personalidades “impossíveis” de ambas as protagonistas em um debate literário na casa de Aurélia.
A história de “Diva” gira em torno da mimada Mila e de seu conturbado relacionamento com o Dr. Augusto. Na transição da infância à adolescência Mila tem uma séria doença que torna necessários os cuidados médicos de Augusto; salva por ele, a moça cresceu alimentando ressentimentos em relação a ele, com a ideia negativa de que lhe “devia” a vida e que o regresso dele, quando ela já é moça formada, se deve ao fato de ele querer favores através de especulações com a família dela. O livro se desenrola, então, apresentando o clássico “puxa-estica” de aproximação e rejeição do casal, do amor que os atrai e dos empecilhos sociais e morais que os afastam. Alencar desenvolve a personagem Emília de forma complexa, descrevendo meticulosamente suas ações e pensamentos, que o leitor conhece através dos constantes conflitos internos do narrador Augusto, fascinado e atormentado por essa mulher singular, e também por meio do instável gênio de Mila, mimada em demasia e habituada a ter seus caprichos atendidos sem demora.
Para mim, Mila é uma personagem de extremos, sempre no limite entre a cândida afeição e o arrebatamento do ódio. É uma personagem multifacetada, difícil de ser interpretada em sua completude, diferente da maioria das “mocinhas” do Romantismo, cujas ações e personalidades seguem uma cartilha maniqueísta. Eu diria que a própria Mila não compreende a si mesma e a seus sentimentos, o que notamos por sua insegurança em relação ao amor de Augusto. Como nos outros dois romances, “Diva” vai além de uma história romântica, ainda que o amor triunfe no final, seja pela consumação das relações do casal ou pela redenção dolorosa e não raro fatalista proporcionada por esse mesmo arrebatamento amoroso.