Luísa Coquemala 23/03/2018
Ler As Irmãs Makioka é entrar no cotidiano do Japão dos anos 30 e começo dos 40, momento no qual acontece uma mudança profunda – escancarada, sobretudo, no mundo do pós-guerra. Nessa transição, há um embate entre os deveres e costumes e a liberdade individual das pessoas. Os tempos são outros, mais acelerados, e nem sempre se encontra lugar para os costumes. A utilidade de tempos modernos invade o mundo de destinos e caminhos certos e preditos.
Acompanhar a história das irmãs Makioka, nesse sentido, é compreender as diversas posições presentes neste espectro. Vamos a elas.
Tsuruko é a irmã mais velha e, de acordo com a ordem familiar, a primeira a se casar. Seu marido, Tatsuo, em uma atitude inesperada, resolve não assumir os negócios do sogro e, por segurança, trabalha como assalariado em um banco. Em seu apego à tradição e deveres de boa esposa, Tsuruko tem 6 filhos e fica à mercê das escolhas e finanças do marido. Por isso, precisa sair da casa onde cresceu e se mudar para Tóqui, cumprindo seus deveres de mãe e esposa em uma casa abarrotada, em uma cidade que odeia. E, em seu apego estrito às tradições e trabalhos de casa, acaba por se afastar cada vez mais das irmãs – restando para si uma posição alta e distante, uma emissora de ordens e imposições.
Sachiko, por sua vez, se casou com Teinosuke e teve apenas uma filha, Etsuko. Sachiko, apesar de também seguir seus deveres e estar sempre pedindo permissão à casa central – representada pela irmã mais velha -, acaba por fazer frequentes desvios frente ao que se espera dela. Tal desvio se dá, sobretudo, na maneira como defende as duas irmãs mais novas quando suas atitudes vão de encontro às expectativas de Tsuruko e Tatsuo.
Entre as duas irmãs mais velhas e as mais novas, encontramos uma ruptura importante: a morte dos pais e a progressiva decadência financeira (e, portanto, social) da família. Para as duas irmãs mais novas, a importante missão do casamento se complica e se torna mais urgente. Yukiko e Taeko estão situadas no cerne do debate entre a ascensão e a decadência da família; entre o Japão antigo e o moderno, que perde aos poucos seus costumes tradicionais em prol de uma sociedade mais prática.
Diante desse cenário, não é por acaso que o romance já se inicia com mais uma das propostas de casamento para Yukiko, um dos conflitos centrais e urgentes do romance – e urgente porque, diante da decadência da família e de sua idade relativamente adiantada, Yukiko já passou da hora de encontrar um parceiro.
Pese as grandes exigências e ritmo lento das irmãs na resolução das propostas de casamento para Yukiko, é de saltar aos olhos como a própria Yukiko é deixada de lado. E nos distanciamos ainda mais de Yukiko na medida em que a narração passa, sobretudo, pelo ponto de vista de Sachiko e das observações de um narrador onisciente. Somando-se a isso o caráter introspectivo da moça, o que nos sobre são seus murmúrios e reticências. São raríssimos os momentos em que o vislumbre da consciência de Yukiko é permitido a nós, algumas linhas em mais de 700 páginas.
Taeko, por fim, é a irmã onde o conflito entre tradição e modernidade se encerra da forma mais radical. A irmã mais nova já havia tentado fugir com o amor da juventude, Okubatake, e, para a vergonha da família, foi parar nas páginas de fofoca do jornal local. Outro detalhe a acrescentar é que, com o passar do tempo, como Taeko não pode se casar antes de Yukiko, o amor por Okubatake mingua (nada que uma boa dose de maturidade não nos ajude a perceber, não é mesmo?). Como Koisan (irmã caçula), Take é constantemente reprimida em sua tentativa de reavaliar a experenciar o amor, em seu desejo de passar um tempo na Europa e na vontade de ter um emprego e se sustentar.
A trajetória de cada uma das irmãs e traçada pela narrativa direta – e, por vezes, cruel – de Tanizaki. E, no conflito entre o velho e o novo, entre o caminho traçado e a vontade individual, as irmãs veem frequentemente sua liberdade sendo cerceada. O testemunho desses limites é doloroso e escancara o principal movimento do livro: a projeção da ação reprimida duramente.
Nesse movimento, todas as irmãs sofrem. Tsuruko se vê presa em uma cidade que não gosta, tendo que se virar com pouco dinheiro e seis filhos. Sachiko, na ânsia de ser uma companheira para todas as horas, vê sua ambição frustrada porque a defesa das outras irmãs nem sempre caminha junto com a posição que se espera dele – por isso, faz muitas coisas escondida ou se reprime para não fazê-las, sofrendo com isso. Yukiko, resignada e sem voz própria, passa por diversos encontros com pretendentes que pouco lhe interessam e não demonstra em momento algum ter ânimo com a ideia de casamento. Ademais, é levada da casa central à casa secundária mais à revelia do que por vontade própria, sofrendo por estar, às vezes, em lugares onde simplesmente não quer estar. O que mais me penaliza, em todo o romance, é uma sensação de que Yukiko simplesmente não quer quiser, mas não tem coragem para dizê-lo. Taeko, cujas vontades são mais fortes e modernas, sente o peso das privações também em dobro. Suas frustações vão culminar em comportamentos indignados e pavorosos aos olhos das irmãs.
E, no final das contas, é isso. As irmãs nascem e, antes mesmo de se darem conta, já têm todos os deveres a cumprir – mesmo que sejam dolorosos, mesmo que se choquem com seus desejos e prazeres. E as perguntas feitas são apenas as que permitem as respostas ideais. Ninguém pergunta a Tsuruko se ela quer ir a Tóqui, mas quando ela vai; ninguém pergunta a Yukiko se ela quer casar, mas se gosta deste ou daquele pretendente.
Apesar de ser uma história difícil e por vezes dolorosa, imita o movimento da vida onde, por vezes, nem tudo é só tristeza, nem tudo é apenas dor. Há pequenos e bons momentos de sensibilidade e discreta beleza. E tais momentos são o testemunho das cerejeiras em flor, tão apreciado pelas irmãs: breves, mas marcantes.
Por fim, diria que contraste dos deveres das irmãs com um mundo cada vez mais livre de tradições, o dever em contraste com a beleza, faz com que suas privações nos doam ainda mais e me recorda, apesar da enorme distância temporal, os versos de Calderón:
"Ai de mim, ai, pobre de mim!
Aqui estou, ó Deus, para entender que crime cometi contra Vós.
Mas, se nasci, eu já entendo o crime que cometi.
Aí está motivo suficiente para Vossa justiça, Vosso rigor, porque o crime maior do homem é ter nascido.
Para apurar meus cuidados, só queria saber que outros crimes cometi contra Vós além do crime de nascer. Não nasceram outros também?
Pois, se os outros nasceram, que privilégios tiveram que eu jamais gozei?
Nasce uma ave e, embelezada por seus ricos enfeites, não passa de flor de plumas, ramalhete alado quando veloz cortando salões aéreos, recusa piedade ao ninho que abandona em paz.
E eu, tendo mais instinto, tenho menos liberdade?
Nasce uma fera e, com a pele respingada de belas manchas, que lembram estrelas.
Logo, atrevida e feroz, a necessidade humana lhe ensina a crueldade, monstro de seu labirinto.
E eu, tendo mais alma, tenho menos liberdade?
Nasce um peixe, aborto de ovas e Iodo e, feito um barco de escamas sobre as ondas, ele gira, gira por toda parte, exibindo a imensa habilidade que lhe dá um coração frio.
E eu, tendo mais escolha, tenho menos liberdade?
Nasce um riacho, serpente prateada, que dentre flores surge de repente e de repente, entre flores se esconde onde músico celebra a piedade das flores que lhe dão um campo aberto à sua fuga.
E eu, tendo mais vida, tenho menos liberdade?
Assim, assim chegando a esta paixão, um vulcão qual o Etna quisera arrancar do peito, pedaços do coração.
Que lei, justiça ou razão pôde recusar aos homens privilégio tão suave, exceção tão única que Deus deu a um cristal, a um peixe, a uma fera e a uma ave?"