Marcos Ferraz 01/04/2020
Uma parábola da história da humanidade.
Eu nunca tinha lido o livro, nem assistido ao filme. E gostei muito. Um dos melhores que li recentemente.
Trata-se de uma trama passada no ano de 1327, ou seja, na Baixa Idade Média (século XI ao XV), período marcado pela desintegração do feudalismo e formação do capitalismo na Europa Ocidental. Ocorrem, nesse período, transformações na esfera econômica (crescimento do comércio monetário), social (projeção da burguesia e sua aliança com o rei), política (formação das monarquias nacionais representadas pelos reis absolutistas) e até religiosas, que culminarão com o cisma do ocidente, através do protestantismo iniciado por Martinho Lutero na Alemanha (1517).
Destaca-se também o movimento renascentista que surgiu em Florença no século XIV e se propagou pela Itália e Europa, entre os séculos XV e XVI. O renascimento, enquanto movimento cultural, resgatou da antiguidade greco-romana os valores antropocêntricos e racionais, que adaptados ao período, entraram em choque com o teocentrismo e dogmatismo medievais sustentados pela Igreja.
E o livro traz justamente este contexto de enfrentamento entre a racionalidade (re)nascente e o obscurantismo convenientemente mantido pelo poder dominante, incluído especialmente o poder da Igreja. Sobre este pano de fundo, o monge franciscano Guilherme de Baskerville representa o intelectual renascentista que, com uma postura humanista e racional, consegue desvendar a verdade por trás dos crimes cometidos em um mosteiro beneditino ao qual acabara de chegar com seu escriba e jovem discípulo Adso de Melk, que é quem narra toda a história num manuscrito ao final de sua vida.
O livro traz os elementos formadores da cultura e do pensamento modernos, no período da transição da Idade Média para a Modernidade.
Apesar de poder ser lido normalmente como um romance policial, dada a investigação das misteriosas mortes dos monges, o livro tem, na verdade, uma camada subjacente bem mais densa, com caráter filosófico, quase metafísico, já que nele também se busca a verdade, a explicação, a solução do mistério, a partir de um novo método de investigação. E Guilherme de Baskerville, o frade fransciscano detetive, é também o filósofo, que investiga, examina, interroga, duvida, questiona e, por fim, com seu método empírico e analítico, desvenda o mistério, ainda que para isso seja pago um alto preço.
A obra traz muito do pensamento de Santo Agostinho (354-430), um dos últimos filósofos antigos e o primeiro dos medievais, que fará a mediação da filosofia grega e do pensamento do início do cristianismo com a cultura ocidental, dando origem à filosofia medieval, a partir da interpretação de Platão e o neoplatonismo do cristianismo. As teses de Agostinho nos ajudarão a entender o que se passa na biblioteca secreta daquele mosteiro beneditino, na qual estavam guardados, em grande número, códigos preciosos: parte importante da sabedoria grega e latina que os monges conservaram através dos séculos.
O acesso à biblioteca é restrito, porque há ali um saber que é ainda estritamente pagão (especialmente os textos de Aristóteles), e que pode ameaçar a doutrina cristã. Como diz ao final Jorge de Burgos, o velho bibliotecário, acerca da obra Poética, de Aristóteles – trazido à abadia por meio de obras dos árabes que dominaram a península ibérica e grande parte da Europa –, a comédia pode fazer com que as pessoas percam o temor a Deus e, portanto, faz desmoronar todo esse mundo.
Mas não era só uma questão a respeito do sentido filosófico do riso. O saber técnico-científico do mundo europeu era nesta época extremamente restrito e a contribuição dos árabes será fundamental para este desenvolvimento pelos conhecimentos de que dispunham de matemática, de ciências (física, química, astronomia, medicina) e de filosofia. O pensamento agora (Aristotélico) será marcado pelo empirismo e materialismo. Um enfrentamento da mistificação então reinante na cultura e na sociedade europeia de então.
Há também importantes e acaloradas discussões acerca da riqueza material da Igreja, onde surge um enfrentamento das ideias franciscanas a respeito da pobreza de Cristo e de seus seguidores, chegando a haver movimentos para frustrar a realização de um conclave que decidiria se a Igreja deveria doar parte de suas riquezas. Instala-se até mesmo um Tribunal de Inquisição para julgar e condenar adeptos de tais ideias, consideradas heréticas à época.
O nome da rosa é um livro escrito numa linguagem da época, cheio de citações teológicas, muitas delas referidas em latim. É também uma crítica do poder e do esvaziamento dos valores pela demagogia e pela hipocrisia, pela perversão dos costumes, os conflitos no seio dos movimentos heréticos, a luta contra a mistificação e o poder.
Uma parábola ao mesmo tempo sangrenta e patética da história da humanidade.