Lucas 19/04/2016
Getúlio Vargas: Ditador-estadista ou Presidente-golpista?
Um vasto trabalho de pesquisa deu origem a uma trilogia de livros a respeito do maior político da história do Brasil, o gaúcho Getúlio Dornelles Vargas. O ex-presidente e ex-ditador nunca teve uma biografia que fosse digna à sua relevância quanto à política brasileira, e os livros (esteticamente muito bem acabados, com orelhas e páginas amareladas, com várias imagens da época), escritos pelo jornalista Lira Neto e idealizados pela editora Companhia das Letras, preenchem perfeitamente esta lacuna.
Neste primeiro volume, o leitor é conduzido às raízes do líder republicano Getúlio Vargas: a história da sua família, em especial do seu pai, que lhe passou o gosto pela política e poder de influência, um breve resumo de sua infância e juventude e os caminhos e ações que o levaram a governar o Rio Grande do Sul e, posteriormente, a sua chegada sangrenta ao Palácio do Catete, sede do governo Federal, então no Rio de Janeiro. Logo no início de sua trajetória política, o leitor percebe, que, de fato, Vargas era diferente, com uma astúcia política singular, um conciliador acima de tudo, mas enérgico quando necessário. Seus aliados reclamavam muitas vezes de sua falta momentânea de atitude, mas Getúlio era um perito na arte da inércia calculada. O livro é genial neste aspecto, porque por mais que o narrador mencione o silêncio ocasional do biografado em diversas situações, as entrelinhas revelam que Vargas estava agindo ocultamente, executando seus planos de forma brilhante. Fica muito claro, no entanto, que Getúlio usava sim de meios não muito éticos para participar do jogo político, sendo ambíguo e omisso em algumas ocasiões; era um gênio na arte de falar muito, mas dizer nada. Estes aspectos alimentam o lado obscuro do lendário líder gaúcho em sua busca ponderada-demagógica pelo poder.
Apesar de sempre deixar claro que lutava por um Rio Grande do Sul e um Brasil melhores, Getúlio nem sempre usava de meios humanamente recomendáveis para consolidar tal crença. Acima de tudo, Vargas sempre esteve perto ou no controle do poder; talvez por conveniência ou por vontade íntima, ele sempre estava acompanhado de grandes aliados, com grande força política e que acabavam seguindo o que lhes era pregado. Para Getúlio, baseado no positivismo de Augusto Comte e maquiavelicamente falando, os fins sempre justificavam os meios; valores como moral, ética e fidelidade política podiam ser suprimidos na busca por algo maior.
O excesso de detalhes na narrativa torna o livro cansativo de ser lido, não pela escrita em si, que é clara e objetiva, mas principalmente pelo elevado tamanho dos capítulos, o que faz com que a leitura não seja tão rápida. Além disso, cada capítulo possui dezenas de notas de rodapé, que aparecem separadamente ao fim da obra (ao leitor, é importante constatar que ele não deve se ater a acompanhar cada nota destas. Elas, em sua quase totalidade, se referem a uma fonte bibliográfica, não agindo como esclarecedoras da narrativa). Apesar de exaustivo, em nenhum momento o leitor que gosta de história pensa em abandonar a leitura; isso se deve ao tom por vezes romanesco adotado por Lira Neto, que consegue prender o leitor de forma magistral. Este fascínio, no entanto, é mais bem desenvolvido se o leitor (especialmente os não residentes na região sul, que, naturalmente, possuem menos contato com a cultura daqui) tiver uma boa compreensão de questões históricas do Rio Grande do Sul, sobretudo a Revolução Federalista, que teve grande influência em Getúlio Vargas e seus aliados e que elucida as partes envolvidas nos conflitos das quais ele presenciou e suas crenças políticas, cujas resultantes ecoam por toda a narrativa.
Por fim, o livro gera várias reflexões. A comparação da política atual com a daquela época é inevitável e triste, ao analisarmos o nosso presente. Várias situações inusitadas ao cenário atual são retratadas no livro; mencionar alguma delas aqui soaria como spoiler, mas é impressionante a responsabilidade e ética dos políticos (especialmente do executivo) daquela época com o povo, independente das correntes e ideologias políticas. Era uma época em que ter um deputado federal na família era motivo de orgulho e satisfação. Uma época em que os deputados federais eram mais presos a seu estado natal, podendo se aliar aos seus inimigos regionais em busca de um bem comum maior, seja de aspecto político ou social (esse era um ponto positivo das chamadas oligarquias regionais. No entanto, elas traziam também uma efervescência política muito forte, que acabava atrasando o Brasil como unidade, conforme será retratado na obra). Uma época em que não havia inchaço, de parlamentares e de gastos com eles, nas câmaras federais e estaduais. Uma época utópica aos dias atuais, onde a política deixou de ser vista como um instrumento para melhorar a vida da população e passou a ser meramente um sujo, obscuro e deturpado jogo de interesses. Por mais contraditório ou sanguinário que fosse, Getúlio não seria um político de mais valor que a imensa maioria dos atuais? Será que ele não condenaria veementemente o descaso atual com o dinheiro público, gasto abundante e erradamente? Será que o srº Getúlio não enfrentaria (literalmente) o congresso, a fim de diminuir esta gastança monumental que ali impera? Será que o seu conservadorismo eminente não faria bem à nossa atual sociedade, infestada pelo desrespeito a valores éticos e morais? Difícil (e talvez perca de tempo) imaginar isso, mas Getúlio era um líder tão enigmático e profundamente histórico que acaba sendo natural ao fim da obra que o leitor tome a si estas reflexões e adquira uma grande expectativa pela leitura do segundo tomo da trilogia, onde, certamente, o Getúlio líder dará lugar ao ditador, que ficou, num primeiro momento, uma década e meia como governante máximo do Brasil.