Pablo 22/08/2015
Accra, nosso coração
Já faz algum tempo que acompanho Paulo Coelho mais amiúde. Incomoda-me toda amarra imposta pela sociedade. Posicionar a obra dele como uma literatura menor (e há quem diga que não é literatura!) não foi, para mim, motivo de desistência frente a um conjunto de escritos tão singular. Antes, foi um impulsionador daquela revolta que só quem é minoria sabe como funciona. Após a leitura detida de muitas das suas obras, desenvolvi teorias particulares e as separei em tomos, literaturas e não-literaturas (sim, há obras que não se encaixam no signo literário dentre o que produziu!). este tema é certamente mais proveitoso em um diálogo presencial ou em uma tese de doutoramento – quem sabe?
O fato de hoje é a re-leitura de “Manuscrito encontrado em Accra” (Paulo Coelho, Sextante, 2012). Mais uma vez, permeado pelas muitas remissões à espiritualidade e às esferas outras que teoricamente cercam o mundo comumente designado real, um enredo muito particular, que ganha na intertextualidade e transborda lirismo para aquele que o lê. É uma experiência de vida fazer Accra o seu próprio coração. Alguns grandes temas rondam as reflexões tecidas. Apresento-as conforme as ordens do meu coração.
Nesta leitura (lembro que, segundo a Estética da Recepção, cada pessoa e cada configuração trazem uma nova forma de experienciar o mesmo tecido), a solidão a que estamos condenados (Cf. p.40), embora tão unidos e dependentes – Norbert Elias e sua “A Sociedade dos Indivíduos”, como atividade mais recente, traz toda uma matiz explicativa – é a grande latência. “Nascemos sós e morremos sós. Mas, enquanto estamos neste planeta, precisamos aceitar e glorificar nosso ato de f´é em outras pessoas” (p.97).
O amor, sempre ele, também está presente no livro. Destaco aquele que ultrapassa o carnal e encontra na sublimação da alma sua festa. Amor entre humanidades. “Só os derrotados conhecem o Amor. Porque é no reino do amor que travamos nossos primeiros combates – e geralmente perdemos” (p.31). Neste sentido, sentir-se menor perante o ser amado é natural e inevitável, o que não nos deve levar à depressão, mas à fortaleza com que contamos e desenvolvemos nas grandes batalhas. Mais vale, à moda “coelhana”, a beleza de uma luta justa e seus encargos sobre nossa moral e ética do que a tristeza de um sempre condicional.
Lá pela página 37 tece considerações que unem a perspectiva amorosa com a magia do estar apenas consigo mesmo: “A solidão não é a ausência do Amor, mas o seu complemento” (p.37). O sentimento de Afrodite precisa de descanso, somente aceitando que a sua ardência não é ininterrupta nem conclusiva se pode entender um pouco das necessidades individuais. Ser só não quer dizer estar abandonado. Antes, evoca a oportunidade em que se converte a ausência de outros para se entender o indivíduo. “Assim como o Amor é a condição divina, a solidão é a condição humana. E ambos convivem sem conflitos para aqueles que entendem o milagre da vida” (p.40).
Outro aspecto muito interessante é a concepção do autor de que os conhecimentos que construímos durante toda a existência constituem uma espécie de patrimônio particular relevante que não nos pode ser subtraído. “Podem destruir a cidade, mas não podem acabar com tudo aquilo que ela nos ensinou” (p.20) e, mais tarde, “Podem acabar com meu corpo, mas não podem destruir minha alma” (p.85).
Ademais, todo o texto se faz como discurso religioso, dadas suas contundentes inserções na apresentação e a invocação recorrente de passagens dos livros de referência de várias fés. “Que tudo o que minha mão tocar, meus olhos virem e minha boca provar seja diferente, embora continue igual. Assim, todas essas coisas deixarão de ser natureza-morta e passarão a me explicar por que estão comigo por tanto tempo – e manifestarão o milagre do reencontro com emoções que já tinham sido desgastadas pela rotina” (p.85-6).
Talvez um dos mais importantes índices de Coelho seja justamente a sua opção por dividir a vida e as reflexões feitas durante seu próprio caminho peregrino com o seu leitor. E ele não é apenas um audiente, mas uma configuração ativa. Não que os seres ficcionais se percebam, mas seu discurso é montado a partir de uma percepção muito aguda da essência humana.
Deste modo, normalmente o ser humano é apresentado como um lutador, uma alma que busca o crescimento e a afirmação de sua dignidade. “quando o lutador estiver na arena – seja por escolha própria, seja porque o insondável destino o colocou ali –, que seu espírito tenha alegria no combate que está prestes a travar. Se mantiver a dignidade e a honra, ele pode perder a batalha, mas jamais será derrotado, porque sua alma está intacta” (p.26). Que a nossa construa novas realidades sempre. Intacta.
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