Michele Soares 03/01/2021
Problemas de memória?
Seguindo com a minha incursão pelos becos, avenidas movimentadas, casas de campo e palácios londrinos, sou conduzida pelo detetive consultor Sherlock Holmes e pelo dr. John Watson em direção a novos onze contos que compõem o volume “Memórias de Sherlock Holmes”. Adianto que dentre esses onze contos poucos são verdadeiras jóias. Para quem queira passear pelas memórias de Sherlock in vero (já já voltarei a esse assunto), os contos “Gloria Scott” e “O Ritual Musgrave” podem interessar. Porém, quanto a mim, destaco como realmente interessantes e únicos dignos de releitura os contos que fecham o volume “O intérprete grego” pela aparição de um personagem especial, “O tratado naval”, além do fantástico (e também favorito, ao lado do “Escândalo na Boêmia”) “O problema final”. Os demais contos foram de uma leitura maçante, por vezes até mesmo penosa. Contudo, pelas pérolas escondidas entre um caso ou outro mais fraco, eu passaria pelas “Memórias” outra vez, se fosse preciso. Pode-se concluir, portanto, que deixo três estrelas para o livro, uma para cada conto que me cativou.
Dito isso, acho que esse é um espaço propício para desenvolver algo que venho observando desde os primeiros romances, até a leitura do volume “As Aventuras de Sherlock Holmes”. Quando digo ali em cima sobre a questão das memórias de Sherlock, é porque gostaria de fazer algumas observações sobre o processo narrativo do dr. Watson, através do qual nos é permitido conhecer o detetive e suas façanhas. A começar pelo título, temos que admitir que ele nutre certa ambiguidade, uma vez que as “Memórias de Sherlock Holmes” podem ser tanto as memórias que ele tem e expõe sobre o seu passado (como nos contos que apontei, “Gloria Scott” e “O Ritual Musgrave”, que narram seus primeiros casos), quanto também as memórias que outros têm dele, e nesse outros, diga-se de passagem, salta a figura do nosso guia principal, o dr. Watson.
Não preciso dizer, nem lembrar, que essa leitura é uma ficção ? ainda que das mais poderosas e instigantes e Sherlock, feliz ou infelizmente, é um personagem de Sir Arthur Conan Doyle. Entretanto, acho que seria digno de nota marcar o quanto esses escritos sobre Sherlock, desde o primeiro romance “Um estudo em vermelho” até o último conto “O problema final”, são apresentados como se fossem pertencentes ao gênero biográfico. Temos um personagem que é um ex-médico do exército britânico, e que, após viver e registrar suas aventuras com Sherlock, decidiu publicá-las, sem nem mesmo exigir um intervalo muito longo de tempo entre relato e vivência, mas sim, o personagem publica as narrativas enquanto as vive no apartamento da Baker Street 221B. Foram esses relatos, inclusive, que garantiram um maior alcance para o renome de Sherlock, dentro da própria narrativa, e, fora dela, garantiu que o personagem fosse o detetive consultor mais famoso de que o Ocidente já teve notícia.
Nenhuma dessas observações é em vão e espero que entendam onde quero chegar com tudo isso. Sherlock é um personagem da ficção de Conan Doyle, mas ele é personagem *só* de Conan Doyle? Ou não seria ele também personagem das próprias histórias que um prestativo biógrafo, o dr. Watson, trata de escrever, se valendo, como é provável, de todos os caprichos de qualquer escritor ? alterações, supressões, modificações e, por que não, ficções? A grosso modo o que teríamos é uma ficção emoldurada por Conan Doyle, na qual dentro há uma nova ficção emoldurada por Watson, ficção esta que, por sua vez, quer se apresentar não como ficção, mas como verdade biográfica, embebida das suas respectivas marcas de autoridade. Muitas narrativas são entremeadas pelos avisos do dr. Watson de que tal caso não pode ser narrado ainda porque compromete os envolvidos ou que tal caso é narrado porque uma das peças já morreu, ou, ainda, que os personagens, com alguma frequência os criminosos das narrativas, descrevem e desmistificam os mistérios dos casos, geralmente ao final do conto, explicando didaticamente todo o ocorrido e jurando falar a Verdade e somente a Verdade. Quanto à discussão sobre os gêneros, o próprio Sherlock, mais de uma vez, acusa Watson de embelezar suas narrativas, de manipular os leitores e as leituras dos seus casos.
Esse drama à parte, relacionado a narração e aos gêneros biográfico/ficcional, é algo que perpassa uma boa dose de momentos desses contos e admito que esses momentos de embate entre consciência da ficção e faceta biográfica são os meus dilemas favoritos em muitos contos onde falta uma carga eletrizante de mistério. Sobretudo a abertura das narrativas é o espaço reservado para essa dramatização do processo de escrita. Ao fim e ao cabo, estamos diante de um personagem que, ao melhor estilo da relação Sócrates e Platão, só se deixa conhecer pelos escritos do seu discípulo/amigo, aquele que lhe admira em diversos aspectos e cuja personalidade/feitos só conhecemos até certo ponto, ao passo que jazemos para sempre ignorantes dos limites entre os fatos e as invenções, entre a figura física e a personagem ficcional. Sem querer devanear muito, a resposta para esse problema está dada de largada no começo dessa resenha: Sherlock é assumidamente uma personagem ficcional ? questão resolvida, podem apagar as luzes e ir para casa. Só não pude evitar desenvolver esse pequeno exercício, o qual exponho esperando, se não a total compreensão, ao menos o perdão e a empatia do leitor. Prometo que na próxima resenha devo ser mais sucinta e me ater apenas a um "gostei" ou "não gostei" e ao "de lei": "Sherlock, eu te amo!". Após limpar o sal dos lábios com a água mortíferas das quedas de Reinchenbach, devo começar "O cão dos Baskerville" na próxima semana com as boas expectativas que só Sherlock Holmes é capaz de me despertar.