Sebo Por Todo C 12/12/2015
QUANTAS VOLTINHAS
A não ser por O INVENTOR DA SOLIDÃO de Paul Auster, não lembro de outro livro em que eu tenha destacado tantos trechos como em ENAMORAMENTOS. Grandes sacadas, fina ironia, algumas verdades como essa:
"parece que sempre é cedo demais para pôr fim às coisas ou às pessoas, nunca vemos o momento oportuno, aquele em que nós mesmos diríamos: 'Chega. Está bom. Já basta, melhor assim. O que vier de agora em diante será pior, uma deterioração, um rebaixamento, uma mancha'. Nunca nos atrevemos a tanto, a dizer 'Este tempo passou, apesar de ser o nosso', e por isso não está em nossas mãos o final de nada, porque se dependesse delas tudo continuaria indefinidamente, contaminando-se e sujando-se, sem que nenhum vivo jamais passasse à condição de morto."
Um certo encantamento que não chegou ao enamoramento (mas bem perto) acompanhou minha leitura até quase a metade do livro.
Só até a metade do livro?
Pois é.
Para que tudo fique claro, vamos aos acontecimentos.
Estamos em Madri e fazemos companhia à Maria Dolz enquanto diariamente admira o que para ela é o "casal perfeito". Avistar o par apaixonado no café da manhã se torna para Maria Dolz quase uma obrigatoriedade: sem esse encontro "da paisagem matinal deles", o dia lhe pareceria menos suportável.
A observação diária e solitária se passa na cafeteria em que o empresário Desvern e Luísa tomam seu café da manhã . A vida do casal é imaginada por Maria Dolz tendo por base pequenos indícios, suficientes para dar cor e sabor ao seu cotidiano enquanto cumpre a jornada diária como editora de literatura. Ela não encontra satisfação no trabalho, acompanhando autores por ela considerados egocêntricos, infantis e outras qualificações pouco glamorosas.
A narrativa se impõe criando a tensão necessária para o encadeamento do enredo: Desvern -- o marido apaixonado e correspondido -- é assassinado por um guardador de carros em um ataque alucinado enquanto o agressor acusa o empresário de ser o responsável pela prostituição de suas duas filhas (uma semana antes esse mesmo homem havia agredido o motorista de Desvern, sem maiores consequências).
Luísa, inconsolável e depressiva após a morte do marido, recebe as condolências da não mais desconhecida Maria Dolz. Ao aceitar o convite para visitar Luísa em seu apartamento, conhece o melhor amigo de Dasvern, o charmoso Díaz-Varela de quem acaba se tornando amante ocasional.
Quem nos relata os acontecimentos é Maria Dolz. A princípio o texto se alonga em conjecturas e possibilidades, estendendo-se em exercício literário interessante. Porém, passadas as primeiras cento e oitenta páginas o que antes era recurso literário se transforma em travessia amarrada, cada parágrafo alongando-se em considerações intermináveis, a frase seguinte como um pequeno prolongamento do que a anterior havia afirmado, deixando o leitor sem esperança de um texto sem tantas voltinhas.
Maria Dolz, a voyer solitária, não apresenta desenvoltura como personagem e não provoca empatia. Ao contrário.
O empresário Desvern e Luísa, personagens encantadores, são massacrados para não mais representarem nestas páginas a felicidade ou esperança e não são substituídos na função de trazerem o otimismo ao cotidiano de Maria Dolz -- e nem ao nosso, pobre leitor que chegou esgotado às últimas páginas do livro.
Trecho Predileto, primeira página, primeiro parágrafo.
"A última vez que vi Miguel Desvern ou Deverne foi também a última vez que sua mulher, Luísa, o viu, o que não deixou de ser estranho e talvez injusto, já que ela era isso, sua mulher, e eu, ao contrário, era uma desconhecida e nunca havia trocado uma só palavra com ele. Nem sabia seu nome, só soube quando já era tarde, quando apareceu sua foto no jornal, esfaqueado, a camisa quase despida, e a ponto de virar defunto, se é que já não fosse para sua consciência ausente que nunca mais voltou: a última coisa de que deve ter se dado conta foi que o esfaqueavam por equívoco e sem motivo, ou seja, imbecilmente, e além do mais várias vezes, sem salvação, não uma só, mas com vontade de suprimi-lo do mundo e expulsá-lo sem mais demora da terra, ali e então. Tarde para quê, eu me pergunto. A verdade é que não sei. É que, quando alguém morre, pensamos que já ficou tarde para qualquer coisa, para tudo -- ainda mais para esperá-lo --, e nos limitamos a dar baixa nessa pessoa. Assim também com nossos achegados, embora nos custe muito mais e os choremos, e sua imagem nos acompanhe na mente quando caminhamos pelas ruas ou em casa, e acreditemos por muito tempo que não vamos nos acostumar. Mas desde o início sabemos -- desde que morrem -- que já não devemos contar com eles, nem para a mais ínfima das coisas, para um telefonema trivial ou uma pergunta boba ('Lembrou de deixar a chave do carro?', 'Que horas mesmo as crianças saíam hoje?'), só por perguntar, por nada. Nada é nada. Na realidade, é incompreensível, porque supõe ter certezas, e isso vai de encontro à nossa natureza: a certeza de que alguém não vai mais vir, nem falar, nem dar um passo, nunca mais -- nem para se aproximar nem para se afastar --, nem olhar para nós, nem desviar a vista. Não sei como resistimos a isso, nem como nos recuperamos. Não sei como por vezes nos esquecemos, quando o tempo já passou e nos afastou dele, que ficaram parados."
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