gabriel 22/03/2023
Histórias curtas e bem escritas
Nem sei se as histórias aqui podem ser classificadas como "contos", já que são significativamente mais curtas do que o já curto gênero. São "notas", como diz o título, e aqui acredito haver umas 20 ou 30 delas até. São realmente muito curtas, algumas com apenas poucas páginas, escritas de maneira despretensiosa e fenomenal.
Difícil descrever a literatura de Bukowski, escritor norte-americano que ainda não recebeu grande atenção do mundo acadêmico. É uma literatura para ser experimentada, não "lida" (em sentido intelectual), é absolutamente sensorial e insere a gente diretamente no mundo do autor. E prende, prende muito.
Ácida, debochada, por vezes deprimente, com rasgos de esperança aqui e ali. Sem qualquer compromisso com a "moral e os bons costumes" (estatuto geralmente autoritário, diga-se de passagem), ela parece cuspir nisso, e com vontade. Escatológica, fala das nossas necessidades pessoais. Bukowski é capaz de colocar um vaso de flores e uma privada num mesmo parágrafo. E funciona.
A sua prosa é poética, mas é uma poesia especial, particular, formada de elementos não poéticos. O universo é o universo dos becos, dos perdedores, dos bêbados e dos vagabundos. Por vezes ficamos com raiva do protagonista (uma figura que varia entre vários nomes; quase todos Henry, ou Harry, às vezes é somente Bukowski), que é uma figura cínica, machista, cafajeste, e depois conseguimos compreendê-lo e perdoá-lo. O autor joga com nossas emoções e expectativas, o tempo todo, sendo um escritor habilidoso.
Por trás de toda a avacalhação, existe um talento literário bruto, que aqui se mostra em toda a sua força. Se Bukowski não fosse quem era - este velho safado, aqui retratado - ele talvez seria encaixado no mainstream e rivalizaria com grandes nomes. Talvez alcançaria a dimensão de um Hemingway, de um Camus (aliás, referências constantes no livro)? Difícil dizer. Deixemos a pergunta para os acadêmicos e especialistas.
Alguns dos contos saem mais do padrão e se assemelham a verdadeiras crônicas. Uma delas é bastante politizada e desenha um pouco a visão de mundo e as preocupações dos Estados Unidos dos anos 1960. Em alguns momentos, a infância do autor é retratada, tendo esta acontecido na Grande Depressão, nos anos 1930. A escrita é moderna, limpa, inteligente, totalmente fluida e divertida (ainda que de uma diversão meio perversa, às vezes...).
O que incomoda, na verdade, é o uso somente de minúsculas, mesmo no início das frases. Eu sou meio cegueta e confundo os pontos com as vírgulas. Mas isso é algo absolutamente pessoal. Ademais, acho que essa prática envelheceu um pouco, mas ela passa a ideia de uma escrita mais rasgada, como se fosse um caderno que ia ser jogado fora (inclusive, um dos capítulos foi totalmente escrito em caixas de papelão; sendo formado de aforismos escritos desta maneira, segundo o autor). Longe de ferir o livro de morte.
Há alguns erros pequenos de revisão, na maior parte desapercebidos. A tradução é ok e há algumas notas delas. Parece seguir o espírito do próprio autor (um estilo bastante antiacadêmico e anti-intelectual). Mostra preocupação com as frases mais problemáticas, anotando-as quando é o caso.
Os cenários variam entre a tradicional L.A. do seu autor (e os submundos de North Hollywood e demais imediações, temos aqui a geografia completa do local), o que transmite aquela sensação peculiar de glamour e decadência. Mas também o seu autor visita lugares como a Filadélfia e a estrangeira Nova Iorque, diametralmente oposta a Califórnia do autor (o fato de ele ser um peixe fora d'água nestes locais é impagável).
Recomendadíssimo, mas não espere aqui um conto de flores, de beleza (no sentido tradicional), aqui tem muita sacanagem, mau-caratismo, violência, ainda que o seu autor, em momentos bem esparsos (como um dos últimos contos no final) faça uma sugestão bem breve na linha oposta. Mas é aqui, no geral, uma realidade dura, sem contos de fadas.
Para mim, Bukowski se insere num registro que inclui filmes como Taxi Driver, ou então mais recentemente o Grande Lebowski, filmes com uma estética violenta e decadente, que incorporam algo do nonsense, retratando uma espécie bem peculiar de desespero social.
Coisa fina, mas no meu entender, mereceria edições mais cuidadosas em língua portuguesa, recebendo um tratamento melhor que as velhas edições de bolso (quase sempre o formato dos seus livros no Brasil).