Com ele não era a morte que o preocupava. Com ele eram as partes soltas e não resolvidas que ficaram para trás - uma filha de quatro anos de idade em alguma comunidade hippy no Arizona; meias e cuecas pelo chão, pratos na pia; um carro não pago, contas de gás, contas de luz, contas de telefone; pedaços dele deixados em quase todos os estados da União, pedaços dele deixados em bucetas mal-lavadas de meia centena de putas; pedaços dele deixados em mastros de bandeiras e saídas de incêndio, terrenos baldios, aulas da Comunidade da Igreja Católica, celas de prisão, barcos; pedaços dele deixados em bandeides e lá embaixo nos esgotos; pedaços dele deixados em despertadores jogados fora, sapatos jogados fora, mulheres jogadas fora, amigos jogados fora...
Em "Notas de um velho safado", a América tem uma cara de 50 anos, corpo de 18 e desfila de calcinha rosa claro e salto alto na madrugada corrosiva de Los Angeles. A América é um sapatão furioso com uma garra metálica no lugar da mão esquerda e não quer saber de transar com o Velho Safado. A América é uma deusa milionária com a qual ele se casa e da qual amargamente se separa. A América é uma prostituta, 150 quilos, um metro e meio de altura, que peida, uiva e destroça a cama quando goza. A América é também estudantes e revolucionários fazendo OOOOOOOOMMM ou proferindo discursos inflamados em parques ensolarados de São Francisco no final da década de 60.A América é Neal Cassady dirigindo alucinadamente pelas ruas de Los Angeles, pouco antes de morrer de overdose sobre os trilhos de uma ferrovia mexicana. A América é Jack Kerouac e Bukowski poetando na Veneza californiana.
Alguns leitores, e sobretudo a crítica, captam por vezes somente o aspecto sensacional e "obsceno" de Bukowski, porém debaixo de suas máscaras, segue desnudando-se sua mais desconcertante intimidade - na desolação e no medo, no horror e no pânico e num cinismo autodefensivo, recupera sua humanidade, seu egoísmo, seu senso do ridículo e sua irreverente compaixão. Em relação a este autor parece não haver meio termo: as pessoas o amam ou o odeiam. Num certo sentido, pode-se dizer que Nukowski é uma espécie de lenda viva de seu tempo: um doido, um recluso, um amante - terno, corrupto, mas nunca o mesmo. AS NOTAS DE UM VELHO SAFADO são todas histórias excepcionais saídas de sua vida violenta e depravada, horrível e santa. Não podemos lê-lo e seguir sendo os mesmos.
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