Isabel 09/06/2013Me perdoem por parafrasear de forma torta, mas a internet não é tão confiável neste caso e sou péssima para decorar o que quer que seja. De qualquer maneira, o poeta disse que há poesia até no elevador, então não existiria, de fato, o tal “encanto da lama”, que leva estrangeiros ao pagamento de somas altíssimas por um tour em um morro carioca?
Ainda que protegidos por redomas de cercas elétricas, muros altos e indiferença, creio que qualquer brasileiro possa afirmar com certeza – o encanto da lama, que exalta pobreza como algo belo, é uma ilusão. Um alívio, portanto, ter Zeca Camargo reafirmando isso na sua introdução a Em busca de um final feliz.
Em uma análise rasa, os “personagens” (que na verdade são pessoas reais, que passaram por diversas entrevistas com a autora) de Katherine Boo não deveriam saber que sua vida é tão ruim assim: assim como não pensamos no fato de que estamos imersos em ar porque assim sempre estivemos, nenhum deles conhece uma vida melhor para parâmetro de comparação.
Mas ah, a desigualdade social! Não é um problema só brasileiro, e desce amarga pela garganta dos habitantes da favela de Annawadi, onde a história se passa. Mesmo com resquícios de um sistema de castas milenar, todos eles querem sim “subir na vida”. Não há nenhuma ilusão de riquezas sem fim ou estrelato em Bollywood, e sim de coisas aparentemente singelas (para o leitor) como uma casa sem infiltrações, um emprego com uniforme bonito e diploma universitário.
Na versão de Annawadi da selvageria capitalista, alguns se dão melhor do que os outros: a família de Abdul, mulçumana, prospera aos poucos com um negócio de catação de lixo. A pequena reforma na casa (que não será mais invadida por dois palmos do lago de esgoto no meio da favela) atrai a atenção e a inveja da vizinha Fátima, a Perna-Só, ridicularizada por todos graças a sua deficiência.
No Brasil, a perspectiva de alguém ser condenado por “incitar suicídio” parece ridículo, mas na Índia (onde mulheres são, diariamente, incentivadas a se matar após a morte de seus maridos, não se tornando assim um “peso financeiro” para as famílias dos mesmos) isso é bem real e complicado. Fátima se auto-imola, acusando seus vizinhos de a levarem a tal ato, condenando então Abdul e nos levando para um passeio no intrincado sistema de corrupção indiano. Não que eu ache que devemos comparar esse tipo de male, mas se me permitem cair nesse erro, a nossa corrupção soa como brincadeira de criança ao lado da praticada pelas autoridades da Índia.
Isso nos leva a Asha, uma das grandes benfeitoras da favela – membro de um partido político, a mulher faz de tudo para ascender socialmente, levando para seus esquemas a sua filha Manju, que sonha em ser professora. A ambição de Asha é tragicômica, tão intensa e desesperante que não é possível torcer (contra ou a favor) desta mulher.
Quase todas as resenhas de Em busca de um final feliz que li continham uma pequena nota de estranhamento pelo livro ser encaixado em não ficção: o nível de detalhe é tamanho que não há como desconfiar de pinceladas ficcionais da autora. Katherine Boo, porém, passou meses e meses em Annawadi, entrevistando repetidamente os moradores sobre o ocorrido com a Perna-Só, justificando então a sua prosa fluida e cheia de certezas.
Utilizando-se de um material tão cru, seria quase impossível (e trágico) acusar a autora de artificialidade ou falta de verossimilhança – não, Em busca de um final feliz é genial em trazer todos os envolvidos não à vida (porque eles de fato a tem) mas sim ao lado do leitor, como se nós fossemos um intrometido chato espiando pelas frestas entre as portas da favela.
Existem algumas divagações com as histórias não muito relacionadas aos núcleos principais, mas tudo se relaciona e se torna interessante e essencial. Só há um grande problema em Em busca de um final feliz, que diminui exponencialmente a nota inicialmente merecida pelo livro: a frieza.
Sim, a narrativa é extremamente fria e impessoal. Eu não queria o estilo emocional de Nicholas Sparks sugerido pela tradução do título, subtítulo e capa, mas um pouco mais de aproximação para com aqueles que fizeram parte de sua vida por meses e meses seguidos faria bem a Katherine Boo. Como qualquer livro que trata da pobreza e da miséria, Em busca de um final feliz é recheado de situações degradantes, mas o tom distante com que elas foram narradas fez com que essa manteiga derretida assumida derramasse uma quantidade incrivelmente pequena de lágrimas no decorrer da leitura.
A coisa de fato bela na obra de Katherine Boo é a força de seus personagens, tirada sabe Ganesha de onde. Mas há algo diferente que torna o livro de Katherine Boo sobre a dura vida em uma favela em Mumbai atraente: é o encanto da humanidade, aflorado quando sua existência em si já é uma situação limite, sem necessidade de seqüestros, vilões malignos ou apocalipses para tal. Não: o antagonista já é o próprio “destino”, se é que ele existe.
Se há poesia na dor? Sim, há. Mas esse é um tipo de verso que ando dispensando – pelo menos na vida real.
Publicada originalmente em distopicamente.blogspot.com