Eduardo 14/11/2018
"Vá então. Há outros mundos além deste."
"O homem de preto fugia pelo deserto e o pistoleiro ia atrás." É assim que começa A Torre Negra, uma saga de mais de 4000 páginas dividida em sete livros e um spin-off.
A primeira coisa que eu tenho a dizer sobre O Pistoleiro é, na realidade, um apelo àqueles que, por ventura, acabam desistindo da série justamente por conta desse primeiro livro: não façam isso. O livro deixa o leitor com mais dúvidas do que explicações, é uma obra cheia de detalhes, histórias entrecortadas, referências não completamente explanadas, mistérios que continuam sendo mistérios, e, para o leitor que é mais acostumado com uma narrativa linear e um conteúdo mastigado, isso pode ser um grande incômodo. Eu gosto de livros que não me dão a história mastigada, mas me fazem ficar na expectativa, criando elos e suposições, portanto não encontrei incômodo algum nesse livro. Todavia, me deixou sim com a cabeça cheia de dúvidas, e foi por isso que esperei ler pelo menos mais dois volumes de A Torre Negra para me certificar de dar um tratamento justo à resenha de O Pistoleiro. Cogitado e atestado: Stephen King é simplesmente genial!
Roland Deschain é o último pistoleiro de um clã de pistoleiros de sua terra, que por enquanto permanece uma incógnita, tanto quanto o tempo em que as narrativas acontecem. A saga inicia-se em um deserto, também desconhecido, mas em meio à uma terra aparentemente desolada, onde Roland persegue incessantemente o "homem de preto", uma figura misteriosa (talvez um mago, um padre, um pastor) que pode ajudar o pistoleiro a chegar à Torre Negra, sua grande obsessão. Por algum motivo até então não revelado, o único propósito de Roland em sua vida é alcançar esse objetivo. A Torre aparentemente representa uma força responsável pelo tempo, pelo espaço e pelo destino, e, de alguma maneira, está sofrendo uma alteração substancial, algo que o pistoleiro considera como causa de "o mundo ter seguido adiante". O homem de preto provavelmente tem respostas para isso.
Durante essa caminhada, Roland conhece um agricultor e seu misterioso corvo e chega, posteriormente, à pequena cidade de Tull, onde consegue mais pistas sobre o homem de preto. A chegada de Roland talvez seja um dos pontos mais curiosos do livro. Até então, não se sabe se o cenário desértico da narrativa é realmente uma representação pós-apocalíptica ou retrata um passado distante. Até que "Hey Jude" começa a ser tocada em um piano de um bar. Ora, que época é essa? Como podem coexistir um mundo de clãs e pistoleiros e um mundo onde se toca Beatles em um bar com cara de faroeste? Esta é a primeira das várias "experiências musicais" da saga. E elas não estão ali à toa. Absolutamente nada está ali à toa.
Saindo de Tull, onde Roland vive uma verdadeira experiência de filme de faroeste, e continuando a seguir pelo deserto, o pistoleiro se depara com um posto de diligências. Ele encontra então Jake Chambers, um menino de onze anos, vindo da Nova York dos anos 1970, e que não fazia ideia de como havia chegado até aquele local. Tudo o que ele soube dizer, posteriormente, foi que havia sido atropelado e, que nos momentos finais de sua morte, havia visto o homem de preto a seu lado. E de novo o viu naquele mundo de Roland.
Nasce então uma relação singular entre os dois. Roland, até então aparentemente um homem durão, vê-se afeiçoado imensamente pelo menino que acabara de conhecer, enxergando nele talvez a figura de um filho. O perigo começa então neste momento: ao continuar sua perseguição ao homem de preto com Jake de companhia, o pistoleiro começa a perceber que o menino "sabe de coisas sem saber porque sabe". Julga também que sua afeição por Jake, por alguma razão, pode ser um truque do homem de preto. As aventuras pelo caminho e as cogitações de Roland mudarão o rumo da história. Ou será que essa história já estava escrita?
Baseada no poema de Robert Browning, "Childe Roland to the Dark Tower Came", em narrativas arturianas, no universo de Tolkien e em diversas referências culturais do mundo contemporâneo, A Torre Negra começa de forma magistral com O Pistoleiro. Por mais que o livro lembre muito um universo de faroeste, isso não é nem a ponta da ponta da ponta do iceberg.
Como eu já havia mencionado, muitos mistérios continuarão obscuros após o fim do livro. Entre eles, os que mais me chamaram a atenção foram o misticismo presente no número 19; a relação dos nomes com locais bíblicos; a presença de certas modernidades como representação de resquícios, e não de evolução; a "língua superior"; e, claro, o passado de Roland.
Provavelmente o ponto mais avassalador de O Pistoleiro está nas cenas finais, passadas em uma gólgota (e isso não é spoiler). O diálogo que se passa nas últimas páginas é o tipo de coisa que vai martelar a minha cabeça por todo o sempre. A Torre Negra fala, acima de tudo, sobre destino, sobre o tempo, sobre a relatividade do espaço. É possível que o destino seja algo escrito, mesmo com o livre-arbítrio? É possível que um conjunto de pessoas viva destinos diferentes simultaneamente? É possível que a ligação entre o tempo, o espaço e o universo seja fruto de uma força controladora? Se o universo é controlado por um ser superior, é possível que ele tenha "assumido" o controle do universo, e não o criado?
Para enfatizar a aura de mistério com que O Pistoleiro é finalizado, termino essa resenha com uma das frases mais célebres dessa série (que se repetirá em volumes seguintes, mas que aparece pela primeira vez aqui), dita por Jake, um dos personagens pelos quais me apaguei mais rapidamente em minha experiência literária: "Vá então. Há outros mundos além deste." E não apenas mundos, Jake.