Canoff 26/11/2023
Não se trata unicamente de um livro que aborda a realidade do Hospital Colônia de Barbacena, mas também da influência de Franco Basaglia e da criação da Lei 180/1978, que extinguiu todos os manicômios do Brasil e humanizou o tratamento de doenças mentais
Daniela Arbex, após dar à luz seu filho, depara-se com uma oportunidade única: relatar jornalisticamente a rotina do Hospital Colônia de Barbacena (MG), uma instituição que, até então, parecia comum, mas que se revela como um "campo de concentração" brasileiro assim que Arbex chega ao local. A forma como o livro foi organizado evidencia a sensibilidade e o profissionalismo da autora. Arbex poderia ter escrito uma reportagem abordando os problemas encontrados no Colônia (como era popularmente conhecido pela população mineira), mas optou por realizar um trabalho mais abrangente, investigando testemunhas, documentos, casos desconhecidos e, o ponto mais forte deste livro, apresentando o contexto das vítimas, familiares, autoridades e outros aspectos que tornaram a obra incrivelmente completa e cativante.
O Colônia foi construído com a finalidade de tratar deficientes mentais e outros casos problemáticos pelo Brasil. No entanto, o que deveria ser um local de recomeço acabou tornando-se um "depósito de pessoas indesejadas", onde várias eram internadas sem sequer ter um quadro clínico comprovado. Pessoas vulneráveis, gays, negros, deficientes, prostitutas, aqueles que se rebelaram contra o sistema e mendigos eram destinados ao Colônia para serem excluídos do ciclo social. Havia casos de pessoas internadas por estarem com "tristeza" e meninas que eram admitidas por terem perdido a virgindade antes do casamento. Bastava que alguém denunciasse ao Estado para que essas pessoas fossem recolhidas e enviadas ao hospital por meio dos "Trens de Doidos", abarrotados de doentes e pessoas vulneráveis.
A rotina dos internados baseava-se em tortura, condições sub-humanas, comida estragada, jornadas exaustivas de trabalho, estupros, abortos e humilhações. Todos estavam submetidos ao Estado e não tinham direitos humanos garantidos. Arbex reuniu dezenas de sobreviventes, obtendo fotos do interior do hospital, relatos emocionantes e cruéis do que as pessoas passaram nas mãos dos guardas e enfermeiros do Colônia. Os rebeldes recebiam doses indiscriminadas de medicamentos para ficarem sedados e não apresentarem resistência aos métodos de tortura utilizados pelos residentes. No inverno, eram submetidos ao frio extremo, muitos ficavam nus a madrugada toda, tomavam banhos gelados com máquinas de pressão (ducha escocesa) e muitos amanheciam mortos devido à hipotermia. Há vários outros relatos impactantes por parte dos sobreviventes que, se mencionados em uma resenha, poderiam prejudicar a experiência de leitura de muitas pessoas, pois acredito que livros como este devem ser explorados de maneira minuciosa e ponderada.
Felizmente, em meio a tanta tortura e crueldade infligida a pessoas que sequer podiam se defender, alguns funcionários se recusaram a seguir os métodos de tortura e começaram a ajudar clandestinamente os pacientes internados por pura perseguição. Pessoas enviavam cartas para parentes na esperança de serem resgatadas, alimentos eram trazidos pelos funcionários, e a realidade do Hospital Colônia de Barbacena começou a ser revelada ao país por meio de denúncias. A relevância de Franco Basaglia, psiquiatra italiano e precursor de uma reforma destinada aos métodos de tratamento de doenças mentais na Itália, abalou o cenário político devido às negligências cometidas nos hospitais psiquiátricos do Brasil. Ao conhecer o Colônia, Basaglia afirmou: "Estive hoje num campo de concentração nazista. Em lugar nenhum do mundo, presenciei uma tragédia como esta".
Após várias denúncias e pessoas dispostas a enfrentar a covardia perpetrada pelas autoridades políticas e gestoras responsáveis pelo Colônia, as pessoas foram sendo resgatadas e ressocializadas por freiras, famílias que decidiram adotar parte das crianças internadas injustamente e por órgãos criados devido a essa alta demanda de pacientes doentes. Há registros de pessoas que cresceram confinadas dentro do Hospital de Barbacena e não desenvolveram hábitos humanos de higiene pessoal e sociabilidade. Arbex obteve o relato de uma mulher que adotou três meninos criados juntos e desenvolveram laços irremediáveis. Segundo ela, educá-los foi um trabalho árduo, já que tiveram que começar do zero. Não sabiam usar roupas, não usavam as mãos para comer, não sabiam sentar, não tomavam banho, defecavam no chão, atiravam fezes uns nos outros como forma de distração e também não falavam.
Depois de várias movimentações sociais pelo Brasil, a classe política passou a atender ao apelo da população e das famílias das vítimas. Pessoas foram transferidas para centros de reabilitação, algumas receberam tratamento de acordo com seus problemas, e outras foram liberadas por não apresentarem nenhuma anormalidade. No entanto, nem tudo estava resolvido, pois o Colônia permaneceu em funcionamento até a década de 1990, e ainda havia pessoas sob os cuidados dos funcionários. O fechamento ocorreu de forma gradual. Conforme os pacientes iam saindo, setores foram sendo desativados e o Colônia foi sendo fechado paulatinamente. Com essa vitória, a reforma idealizada por Basaglia foi adotada no Brasil, levando ao fechamento de manicômios e à aceitação das práticas de tratamento pelos Direitos Humanos. Em 13 de maio de 1978, o presidente Geisel sancionou a Lei 180/1978, extinguindo todos os manicômios em solo nacional. Atualmente, o Hospital Colônia de Barbacena (MG) transformou-se no "Museu da Loucura" e recebe visitantes todos os anos. Lá, é possível encontrar fotos, vídeos, peças de roupas, instrumentos de tortura e outros artefatos que compõem um dos maiores extermínios ocorridos no Brasil. Entre 1903 e 1990, mais de 60 mil pessoas morreram, e mais de mil corpos foram vendidos clandestinamente às universidades de farmácia e medicina de todo o Brasil.