Daniel 28/07/2013O quebra-cabeça da MemóriaJohn Banville utiliza o mesmo recurso do seu premiado livro de 2005, "O Mar", no qual um narrador sexagenário conta sua história alternando o presente com o passado. O passado, neste caso, é o período no qual ele se relacionou com a Sra. Gray, mãe do seu melhor amigo de adolescência.
A maneira como Banville se dirige ao leitor cria a ilusão que você é o único ouvinte de uma história íntima e secreta. Ele faz com maestria uma das coisas que mais gosto na literatura: não apenas conta uma boa história, mas faz comentários sobre a mesma, intercalando a narrativa com reflexões (“Por que as estações se mostram tão obstinadas, por que resistem tanto a mim?”), exclamações (“Como eu amo as palavras antigas, como elas me confortam!”), divagações (“O que recuperei dela, além de fragmentos criados por mim mesmo?”), exatamente como certos pensamentos que nos chegam e não sabemos de onde.
Gosto muito do jeito frequente e original que este autor utiliza a personificação, atribuindo qualidades humanas, por exemplo, a uma torradeira: “gorda e cromada com um agitado brilho de sol da janela refletido no ombro”...
E o cuidado com detalhes, com as sensações, como qual era a tonalidade do céu, ou se estava esfriando ou ventando... Detalhes que não acrescentariam nada ao enredo em si, mas que fazem toda a diferença, pois criam uma atmosfera perfeita para que o leitor que se sinta não só um observador, mas um participante do que está sendo contado.
O principal: como escreve bem! Como sabe narrar bem uma história, como consegue nos prender, tocar e emocionar! Eu costumo sublinhar partes que me chamam mais a atenção (há algumas no meu histórico de leitura), ou trechos que despertam algum tipo de identificação... Infelizmente eu não tive uma amante mais madura na minha adolescência, mas mesmo assim meu livro está praticamente todo sublinhado! Este é o talento de Banville, o leitor se reconhece mesmo em situações que nunca viveu.
Agora, se você gosta de livros “eletrizantes”, com uma reviravolta a cada página ou emoções fáceis... melhor procurar outro coisa pra ler.
Mais do que uma ode à mulher madura, o livro de certa forma homenageia o que fomos e as experiências que vivemos, resultando no que somos hoje. Uma leitura reconfortante, que reverencia o passado; que nos lembra os prazeres e as dores infinitas do primeiro e eterno amor; que nos alerta sobre as peças que a nossa própria memória nos prega; que faz brilhar de novo aquela luz antiga que tingia de um tom especial o tempo em que éramos jovens e impetuosos. Livraço!