spoiler visualizarvitoriadesiqueira 02/06/2020
O visconde partido ao meio
Para Aristóteles, a eudaimonia – - a felicidade –- deveria ser o fim último de todas e quaisquer ações humanas. Para o filósofo, ela seria atingida pela mediania das virtudes, portanto, enquanto a avareza e a prodigalidade seriam vícios, a justa medida entre eles, a generosidade, seria uma virtude e um caminho para a felicidade. Essa concepção ética é bem ilustrada em O visconde partido ao meio. No livro, Italo Calvino descreve, através da fantasiosa divisão de Medardo di Terralba, que nem a vileza tampouco a condescendência fariam sentido em si próprias. Quando a metade má do visconde volta da guerra, ela começa a partir tudo ao meio: frutas, animais e até cogumelos venenosos, que, em uma primeira tentativa de assassinato, são dados para seu sobrinho, quem nos conta a história.
Enquanto a metade vil de Medardo mata aqueles que infringem a lei, a metade benevolente volta à cidade fazendo o bem – até incomodar – a todos, o que faz muitos acharem que o visconde estaria louco ou com um transtorno de personalidade. Quando os dois viscondes tomam conhecimento um sobre o outro, contudo, tudo o que é feito pelo bem é desfeito pelo mal e vice-versa. Como se não bastasse, as duas partes ainda se apaixonam pela mesma moça, Pamela, o que torna ainda mais difícil coexistência do bem e do mal. Um duelo entre as metades é a saída encontrada para que apenas uma delas sobreviva: cada uma dos viscondes se apoia em alguma outra coisa na tentativa de empunhar a espada no outro, a metáfora de Calvino para a dependência da dualidade humana em seus próprios opostos.
Ao final da luta, os dois viscondes estão mortos, o momento para costurá-los de volta. E o visconde deixa de “quase ser” volta à inteireza. Nem bom nem mau. Humano. Com o abandono e esquecimento do sobrinho, portanto, o autor ainda consegue mostrar a lacuna na condição humana diante da deformidade do mundo.
Na obra, Italo Calvino ainda demonstra que nem sempre se conhece algo por sua essência, mas sim por seu oposto, nem sempre fazendo sentido o bem desacompanhado do mal, a luz, da escuridão ou até a vida, da morte. Partindo do conceito de que somos formados por pedaços que continuam sendo partes mesmo em inteireza, opiniões unilaterais e restritas, portanto, perdem o sentido em si próprias, já que, por vezes, todos realizamos uma parte de nós mesmos e não a outra. No fim das contas, já que não somos nem somente bons nem somente ruins, a eudaimonia aristotélica é que seria, de fato, nosso destino.
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