Ana Seerig 18/07/2020
Outro sotaque brasileiro
"Como é que eu posso sumir, se primeiro eu sou eu e fico aí me vendo sempre, não posso sumir de mim e eu estando aí sempre estou, nunca que eu posso sumir." (p. 84)
São passagens como essa que fazem a gente se aproximar de Getúlio Santos Bezerra, um sargento que nada mais quer que cumprir a missão que lhe foi dada. Alheio à política, o que lhe importa é manter sua palavra, nada além. Ele prometeu levar o prisioneiro até Aracaju e é isso que pretende cumprir, mesmo quando lhe dizem que a missão foi cancelada.
É um livro curto, mas a leitura não é fácil. Toda a narrativa é em primeira pessoa, com a inconstância de um monólogo e o sotaque sergipano da época (Ubaldo cresceu em Sergipe). O próprio autor traduziu pro inglês - o que serviu de referência para edições em outros idiomas -, mas eu imagino que metade da história se perdeu no caminho. Como se traduz a fala regional?
A escrita difere tanto de "O sorriso do lagarto" que é inevitável constatar que João Ubaldo Ribeiro foi um grande escritor. Me pergunto como foi possível passar tanto tempo consumindo literatura nacional (não-obrigatória) sem ouvir menção a seus livros.
"Sargento Getúlio" é uma história brasileira demais, com um personagem que encanta pela inocência de quem acreditou que o destino da vida é "ser macho", sem pensar em política ou almejar bens materiais. Em meio à poeira do Nordeste, passar fome é detalhe, o importante é cumprir com a palavra, sem medo. Adianta viver bastante e acomodado? Por isso que Getúlio retrata bem o Brasil. Diferentes gerações de brasileiros, de norte a sul, foram movidos pela teima, estivessem certos ou não.
É o tipo de livro que volta e meia vai ressurgir na cabeça, do nada, e a gente tenta lembrar quem contou tal história - provavelmente vou demorar pra lembrar que foi Getúlio.
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