Gabrieli Gudniak 02/10/2018Sangue chama Sangue.Em um mundo onde todo o poder vem das Trevas, os Sangue, protetores do reino, foram corrompidos, tornando-se um sociedade cruel, em que mulheres matam aquelas mais fortes que si para se manterem no poder, e os homens são escravizados desde a infância. Entretanto, foi profetizada a chegada de uma nova Rainha, a Feiticeira. Com o poder de colocar o mundo de joelhos, mas ainda uma criança, três homens tem suas vidas e destinos ligados a ela. Esse é um livro que tem bastante sexo e violência, então vou falar sobre isso também nessa resenha.
A Filha do Sangue foi um livro que me pegou de surpresa, ele estava na fila para ser lido há mais séculos que os nossos personagens estavam esperando a Feiticeira. E eu tinha decidido deixá-lo para lá, até resolver ler o prólogo, e pronto, o livro já tinha me conquistado, com a narração da nossa querida Tersa.
"Sou Tersa, a Tecelã, Tersa, a Mentirosa, Tersa, a Louca.
Sempre que os Senhores e Senhoras dos Sangue dão um banquete, sou a diversão que vem depois que os músicos tocaram, os rapazes e moças dançaram e os Senhores já beberam vinho demais e exigem que a sorte lhes seja lida. "Conte-nos uma história, Tecelã", gritam, enquanto tocam as coxas das moças que os servem e as Senhoras observam os jovens, a decidir quais deles terão o doloroso prazer de servi-las à noite, na cama."
O mundo da trilogia As Jóias Negras é um universo onde tudo veio das Trevas e tudo às Trevas retornará, mas isso não quer dizer que seja inerentemente ruim. São as pessoas que são boas ou más, e a corrupção que assola essas terras é justamente por causa dos Sangue que se afastaram dos ensinamentos das Trevas. Para entender os personagens, é necessário também entender como essa sociedade funciona e qual é o cenário atual.
Desde que a Sacerdotisa Suprema de Hayll, Dorothea SaDiablo, tomou posse em seu lugar, sua influência e poder distorceram quase todos os territórios. Dorothea matou ou deixou morrer todas as do Sangue que usavam Jóias mais poderosas que as suas, impedindo também que o conhecimento necessário chegasse até elas, o que levou a que os poderes de outras não se desenvolvessem plenamente ou até mesmo à morte. Com mulheres cada vez mais fracas nascendo, uma inversão começou a surgir na sociedade até então matriarcal, em que machos mais poderosos controlavam as fêmeas que haviam restado. Como resposta, os machos foram escravizados, voltando à ordem natural desse mundo, em que as mulheres dominavam, mas desta vez à força, o que vai contra o código do Sangue.
Os poderes vêm das Trevas, mas são as Jóias que os direcionam e armazenam. As Joias vão desde Brancas até Negras, quando crianças, os Sangue que usam Joias passam pela Cerimônia de Direito de Progenitura, onde ganham uma delas pela primeira vez. Mais tarde, após terem sido treinados na Arte - como se denomina a prática de magia nesse mundo -, podem passar pela Oferenda às Trevas, outra cerimônia onde ganharão novas Joias que podem ser até três níveis mais escuras. Quanto mais escuras, mais poderosas. Como Dorothea deixou as fêmeas mais fracas morrerem, há uma discrepância de poder entre os dois sexos. Logo, para controlar controlar os machos mais poderosos que não servem de bom grado, existe o Anel da Obediência. É um anel que se coloca no órgão genital dos machos, que pode enviar ondas de dor incapacitantes.
Eu digo machos e fêmeas porque homem e mulher são denominações para humanos, e os Sangue além de serem outra espécie, também são muito mais... Animais. São muito mais levados por instintos e emoções, o que os faz serem consideravelmente mais violentos e sexuais, ou mais do que nós acreditamos ser. O livro é contado pelo ponto de vista de três personagens masculinos, existe um ou outro capítulo pelo ponto de vista de outros, mas são poucas exceções. Vou falar deles pela ordem que aparecem.
Daemon Sadi é um bastardo escravo de Dorothea, é o macho do Sangue mais poderoso entre os vivos - e os mortos, ou melhor dizendo, demônios-mortos -, um Príncipe dos Senhores da Guerra que foi Anelado ainda criança. Ele é de uma das raças de alta longevidade, e quando o livro começa, sem contar o prólogo, tem cerca de 1.700 anos, o que quer dizer que está no ápice para sua raça. Daemon é um escravo sexual vendido como prostituto por Dorothea à qualquer corte que pague por ele e queira correr os riscos de tê-lo por perto. Os séculos de violência o tornaram uma bomba prestes a explodir, e fica claro que ele está à beira da loucura. Entretanto, agarra-se à profecia de uma Rainha que virá, a quem poderá respeitar e servir por escolha própria.
Ele é o personagem mais difícil de se falar, pois é alguém muito poderoso que foi marcado por todos os abusos que sofreu. É o esteriótipo de frio, cruel e calculista, mas é perfeitamente verossímil que seja dessa forma, ele ficou conhecido como o Sádico por seus episódios de extrema violência e preferências na cama. É interessante ver o ódio que ele sente pelas mulheres que o escravizaram e como isso o molda, enquanto tenta permanecer no que acredita ser certo e proteger aquelas que precisam e que também são vítimas das que estão no poder. A nova Rainha é a única esperança que tem, mas também acredita que não será aceito por ela, já que para a maioria - e para si mesmo - não é mais que um bastardo prostituto. Às vezes as pessoas falando dele meio que força a barra, mas acho que se eu fosse uma plebeia sem poder algum eu também falaria de um guerreiro com mais de mil anos e super poderoso com certo medo e respeito. É gostoso o acompanhar, mas quando o vemos pelos olhos de outra pessoa é um tanto... Cringy. Ah, ele também é o macho mais bonito existente. Eu relevei e segui em frente, afinal, parece que não dá para ter um personagem principal em livro de fantasia com um pouco de romance que não seja O Gostosão™.
Em seguida, conhecemos Lucivar Yaslana, que eu não tenho certeza se o sobrenome é yasiana ou yaslana por que o i maiúsculo e L minúsculo são as mesmas coisas. Mas podemos chamá-los também de meu personagem favorito. Como o meio-irmão, Daemon, Lucivar também é vendido como prostituto por Dorothea, mas no deserto de Pruul. Enquanto a violência de seu irmão é fria, Lucivar é mais selvagem, tendo sido mandado para um território distante justamente por isso. Eu gostaria de ter visto muito mais dele, que parece que, mesmo quebrado e sem esperanças, guarda em si mais gentileza que os demais. Entretanto, os apelidos que ele e o irmão deram um ao outro foram... Eu sentia uma vergonha alheia toda vez que eles usavam, e o apelido que ele deu para a Jaenelle. Ah. Machos. Eu suponho que ele também seja um Príncipe dos Senhores da Guerra, já que usa a Cinza-Ébano, sendo o terceiro mais poderoso.
Depois temos Seatan SaDiablo, que tem uma porrada de títulos, tendo sido o mais poderoso até Daemon Sadi passar por sua Oferenda às Trevas. Ele é o Senhor Supremo do Inferno, Sacerdote Supremo da Ampulheta e Príncipe da Guerra de Dhemlan. Ele agora é um demônio-morto, o que acontece àqueles que morrem, mas que ainda estão fortemente ligados a suas vidas e não se desfazem nas Trevas. Se uma pessoa ainda está ligada à vida, mas não tem força suficiente, se torna um fantasma, lentamente desaparecendo conforme o tempo passa. Existe a morte e a morte definitiva.
Ele é a figura de mentor para Jaenelle, ensinando-a a Arte e preparando tudo para que ela possa ter sua própria corte quando atingir os dezessete. Ele morreu mais velho para sua raça, e já é um demônio-morto há muito tempo. O caso é que em primeiro momento, fiquei chocada com a relação dele com a Jaenelle, afinal, ela tem cinco anos quando eles se conhecem. Felizmente, ela é colocada como uma espécie de filha dele com Cassandra, a Rainha a quem ele serviu enquanto estava vivo. Foi bom ver ele ascendendo novamente e ganhando um propósito, mas não gostei de como ficou a relação dele com uma personagem de seu passado.
O maior problema dos três personagens é que, com exceção de Jaenelle, eles são os três mais poderosos que existem. É difícil acreditar que não há algo que eles possam fazer com o poder que têm a sua disposição em um estalar de dedos. A autora conseguiu saídas inteligentes para esse problema, mas me pergunto como isso se sustentará nos próximos livros, principalmente no que toca a Jaenelle.
Falando nela, ela é a nossa Rainha profetizada e ultra poderosa. Entretanto, também é uma criança, o que nos leva à maioria dos conflitos do livro. Ela é uma criança adorável, mas a relação dela com o trio do poder é complicada, pois ninguém esperava que ela aparecesse tão jovem. Não consigo imaginar como irão haver ameaças além da própria loucura nas sequências.
As relações entre o trio do poder são agradáveis e naturais, tirando os apelidos ridículos e a ocasional violência dos machos. Todos os personagens secundários tem um propósito e personalidade.
Gostei da escrita da autora, mas ela parece ter o tique de repetir as mesmas frases. "Haviam trovões em sua voz", "olhos inocentes e sábios", sem falar em todas as vezes que ela repetiu o quão foda os personagens masculinos eram. As vilãs, Dorothea e Hekatah, não são muito impressionantes, elas apresentam uma ameaça grande o suficiente, mas o desprezo que o trio do poder têm por elas as fazem parecer crianças birrentas e fracas. Se você quiser que um vilão seja respeitado, talvez seja melhor não ter seus personagens repetindo o quão supérfluo e fácil de derrotar ele é. Já é difícil temer e/ou respeitar vilões com mocinhos super poderosos, então esse tipo de coisa não faz sentido.
Um detalhe que poderia ser facilmente dispensado é outro vício que a autora tem. Por exemplo, personagem x recebe objeto y. É mostrado a reação do personagem e de todos ao redor e só depois nos é dito o que é o objeto y. Na primeira vez, isso até funciona, mas a autora repete o mesmo esquema incontáveis vezes no decorrer da trama.
O universo das Joias Negras é extenso e único. Não me lembro de já ter visto um parecido com ele, que abraça as Trevas, cujo abismo é algo a ser adorado e temido em iguais proporções. Por ser tão detalhado, ainda estou confusa sobre muitas coisas. Só para começar, o que é exatamente a Oferenda às Trevas? Uma Viúva Negra tem seu veneno e é capaz de tecer teias, mas qual é a diferença de uma natural ou não? O que são exatamente as teias? São coisas psíquicas ou físicas? Como a Noite da Virgem influencia no poder das mulheres e por que é muito mais fácil quebrar uma mulher? Afinal, não vimos nenhum homem que foi quebrado. Os homens também tem uma Noite de Virgem, afinal, é citado que eles também podem ser quebrados? É difícil acreditar que essa é uma sociedade matriarcal quando as mulheres podem perder o poder na noite que deixam de ser virgens.Além disso, a página da wikia me disse que elas podem ser quebradas no futuro, que só se torna mais difícil depois delas perderem a virgindade, não impossível. Isso é ridículo em tantas proporções que não consigo nem explicar. Essa é uma fucking sociedade matriarcal, e não vemos um único homem que tenha sido quebrado. Como nem a Surreal, que é muito poderosa e uma prostituta, não arrastou algum homem para o abismo até quebrá-lo? Essa é uma parte destoante demais de todo o resto e, honestamente, gosto de fingir que não existe.
Além disso, é dito que, mesmo antes de Dorothea subir ao poder, quando a sociedade fluía seu ritmo natural, Saetan é mais poderoso que a rainha que servia, Cassandra. É compreensível que, após as fêmeas mais poderosas terem sido eliminadas, a balança do poder tenha pendido para o lado dos machos, mas mínimo que deveríamos ter são fêmeas mais poderosas que machos no passado.
Não cheguei nem perto de entender os Reinos e como eles funciona, em um momento, só passei aceitar que estava em um lugar diferente do outro sem saber onde exatamente. A ambientação também não é muito boa, o que é estranho para um mundo com um mundo tão bem construído. Um mapa seria de tão grande ajuda nessas horas. Ou apenas uma explicação mais simples de como as coisas são.
A Filha do Sangue é um livro de dark-fantasy com seus erros e acertos, com um universo único, não é ideal para quem está entrando no gênero de fantasia, mas é uma história impossível de largar.