Tuca 22/03/2021“— Eu gostaria que Deus me desse forças para que eu pudesse falar de maneira convincente sobre a Sua verdade, que nem todas as mulheres que foram corrompidas são depravadas, o quanto o dia do Juízo Final dirá sobre aqueles que viraram as costas para os penitentes, pobres e feridos, quantos buscam uma chance para exercer grandes virtudes, uma ajuda que nenhum homem concede a eles. Uma ajuda repleta de gentileza, a mesma que Jesus um dia ofereceu a Maria Madalena” (p.272)
Se você conseguir imaginar uma pessoa extremamente bondosa, aquela próxima do que os católicos chamariam de santa, você conseguiria enxergar a alma de Ruth. Seu único defeito a princípio era sua ingenuidade, e ela conduziu-a também ao seu único “pecado”, aquele que a marcaria por uma vida inteira e que para a hipócrita, patriarcal e conservadora sociedade vitoriana seria capaz de apagar tudo de bom e nobre que havia nela.
Seu único “pecado” fora se apaixonar por um homem de posição superior e caráter infinitamente inferior ao dela, que a guiou para o que à época era visto como um caminho vergonhoso, o de um relacionamento amoroso fora do casamento, o qual poderia ter se mantido em segredo caso não tivesse resultado em um filho: Leonard. Esse mesmo homem - Mr.Bellingham - a descartou como se tudo o que ela ingenuamente havia dado a ele não fosse aquilo que, naquela conjuntura, representava toda a honra feminina.
“— Os homens podem chamar ações como a sua de tolices da juventude, mas há outro nome perante Deus.” (p.349)
Ruth grávida, catatônica, sozinha e sem família, em um estado depressivo à beira de um suicídio teve o seu raro momento de sorte ao ser acolhida por Mr. Benson, um pároco, que viu nela sua boa índole e encontrou uma forma de levá-la novamente ao caminho de Deus, e juntamente com sua irmã Miss Benson e Sally, a criada da casa, eles se tornaram a família de Ruth e Leonard.
Mesmo com toda a tristeza que traz, Elizabeth Gaskell parece que acerta em todas as suas escolhas nessa obra, criando uma jornada de virtude, bondade e verdade na heroína socialmente vista como pecadora, o que no contexto social do século XIX deve ter chacoalhado certas visões de mundo, e que para os tempos atuais ainda carrega metáforas dos problemas que enfrentamos, como a cultura do cancelamento e o papel da Igreja. Ela constrói uma história sobre a essência da fé, sobre o sacrifício e amor ao próximo, e sobre acolhimento e perdão.
A trajetória de certos personagens coadjuvantes é digna de aplausos. Mr. Benson é um pároco que tem seus engessamentos religiosos, assim como sua irmã, mas cuja fé ainda é maior que o dogma. Merece atenção que Gaskell o tenha descrito como um corcunda, assim, portanto, um homem com deficiências visíveis, mas cujo caráter além de lindo, estava sempre em busca da bondade alheia, crendo na possibilidade da correção de suas imperfeições. Em contrapartida, Mr. Bellingham era um homem de aparência bela, mas a alma era tão deformada, que fica difícil pensar se alguma influência boa seria capaz de fazê-la corresponder ao seu exterior. O amadurecimento de Jemima Bradshaw também não pode ser deixado de lado, assim como o próprio paralelo que a personagem faz entre ela e Ruth. E mais uma vez trazendo para os tempos atuais, temos aqui a discursão sobre boas influências e principalmente sobre informação. Não são poucas as meninas que tem o primeiro contato sexual ou engravidam cedo demais porque não tem conhecimento sobre o próprio corpo, sobre esse tipo de relação, sobre consentimento e sobre contracepção. E ainda hoje, existem pais que acreditam que educação sexual não deveria ocorrer, quando na verdade, é justamente ela que pode proteger essas meninas de serem vítimas de sua própria ingenuidade e da malícia de terceiros.
Em um livro que coloca em cheque a virtude feminina não poderia faltar a discrepância de tratamento dada em relação às condutas da mulher e do homem, além de ser um tema que Gaskell adora colocar em pauta. O livro é preciso nesse ponto. Você não apenas enxerga, mas a própria Ruth é capaz de reconhecer isso e colocar em palavras em um dos momentos que mais lava a alma do leitor. Ademais, é possível ver esse paralelo em como é tratado um personagem que realmente comete um crime e de má-fé ainda mais, enquanto a conduta de Ruth além de ter sido por sua ingenuidade, se olharmos com a mentalidade de hoje, não seria imoral no nível em que foi avaliada na história.
Um erro não deveria definir a vida inteira de ninguém, porque todos somos passíveis da tentação, de ser perder, de cometer delitos, o que nos define é como lidamos com a correção deles, como encaramos a vergonha causada por nossas imperfeições, como reconhecemos a culpa e procuramos trilhar a estrada do bem, sem cair nos mesmos buracos. Essa é a história de Ruth, que busca não apenas ser correta, mas ensinar a seu filho através de seu exemplo a também o ser. Gaskell conclui a dolorosa narrativa de “Ruth” com um final comovente, de uma enorme coerência com o que ela se propôs a fazer e de levar os corações mais duros às lágrimas. Um enredo de penitência, mas também de amor, de muito amor, daquele amor grandioso e inexplicável que parece ser intrínseco aos espíritos mais elevados.
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