jmrainho 30/05/2016
Alimentador de cabeças
Nesses tempos onde houve um ressurgimento do culto à ignorância e à intolerância de algumas minorias que se tornaram mais ruidosas quando grupos políticos abriram a tumba da história, é oportuno ler esse pequeno livreto de Paulo Freire. Composto de palestras e artigos, a obra trata do ato político da leitura e que não existe e nem deve haver neutralidade no ensino. Um bom ensinamento depois que a Assembleia Legislativa de Alagoas transformou em lei o projeto de um deputado que proíbe os professores de emitirem opinião em salas de aula de todo o estado. "O mito da neutralidade", diz Freire, "leva à negação da natureza política do processo educativo... é o ponto de partida para compreendermos as diferenças fundamentais entre uma prática ingênua, uma prática astuta e outra crítica". O autor aborda a alfabetização e pós alfabetização de adultos e defende bibliotecas locais onde os cidadãos e cidadãs de todas as classes contribuam com o conhecimento de suas experiências, descobrindo o mundo a partir das leituras e da troca de suas próprias histórias de vida. A obra traz ainda um trecho do Cadernos de Cultura Popular, utilizado na pós-alfabetização na ilha de São Tomé (África equatorial).
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TRECHOS
A leitura do mundo precede a leitura da palavra.
Os alunos não tinham que memorizar mecanicamente a descrição do objeto, mas apreender a sua significação profunda. A memorização mecânica da descrição do objeto não se constitui em conhecimento do objeto.
Minha crítica à magicização da palavra não significa que, de maneira alguma, uma posição pouco responsável de minha parte com relação à necessidade que temos, educadores e educandos, de ler, sempre e seriamente, os clássicos neste ou naquele campo do saber, de nos adentrarmos nos tetos, de criar uma disciplina intelectual, sem a qual inviabilizamos a nossa prática enquanto professores e estudantes.
Sempre vi a alfabetização de adultos como um ato político e um ato de conhecimento.
A leitura da palavra não é apenas precedida pela leitura do mundo mas por uma certa forma de “escrevê-lo” ou de “reescrevê-lo”, quer dizer, de transformá-lo através de nossa prática consciente.
É o que Gramsci chamaria de ação contra-hegemônica
O mito da neutralidade da educação, que leva à negação da natureza política do processo educativo e a torná-lo como um quefazer puro, em que nos engajamos a serviço da humanidade entendida como uma abstração, é o ponto de partida para compreendermos as diferenças fundamentais entre uma prática ingênua, uma prática astuta e outra crítica.
Do ponto de vista crítico, é tão impossível negar natureza política do processo educativo quanto negar o caráter educativo do ato político. É impossível uma educação neutra, que se diga a serviço da humanidade. Tanto no caso do processo educativo quanto no do ato político, uma as questões fundamentais seja a clareza em torno de a favor de quem e do que, portanto contra quem e contra o quê, desenvolvemos a atividade política.
A educação burguesa, sistematizada. Sua sistematização e generalização é que só foram viáveis com a burguesia como classe dominante e não mais contestatória.
A educação reproduz a ideologia dominante, é certo, mas não faz apenas isso.
O fato de não ser o educador um agente neutro não significa necessariamente, que deve ser um manipulador.
Escutá-los é, no fundo, falar com eles, enquanto simplesmente falar a eles seria uma forma de não ouvi-los. Dizer-lhes sempre a nossa palavra sem jamais nos expormos e nos oferecermos à deles, arrogantemente convencidos de que estamos aqui para salvá-los.
Estando num lado da rua, ninguém estará em seguida no outro, a não ser atravessando a rua.
Nada poderá ser feito antes que uma geração inteira de gente boa e justa assuma a tarefa de criar a sociedade ideal.
A única diferença entre mim e um educador astutamente ingênuo, com relação à compreensão de um dos aspectos centrais do processo educativo está em que, sabendo amos, ele e eu, que a educação não é neutra, somente eu o afirmo.
Os pós-alfabetizandos precisam ter uma pequena biblioteca popular com a inclusão de páginas escritas pelos próprios educandos. Biblioteca popular, como centro cultural e não como um depósito silencioso de livros. Estórias em torno de vultos populares famosos, dos “doidinhos” da vila, com sua importância social, das superstições, das crendices, das plantas medicinais, da figura de algum doutor médico, da de curandeiras e comadres, da de poetas do povo.
Entrevistas com artistas da área, os fazedores de bonecos, de barro ou de maneira, escultores quase sempre de mão-cheia; com as rendeiras que porventura ainda existam, com rezadores gerais, que curam amores desfeitos ou espinhelas caídas.
Ao contrário da manipulação, como do espontaneísmo, é a participação crítica e democrática doa educandos no ato do conhecimento de que são também sujeitos.
Fazer a História é estar presente nela e não simplesmente nela estar representado.
Estudar é assumir uma atitude séria e curiosa diante de um problema. Estudar não é fácil porque estudar é recriar e não repetir o que os outros dizem.
Todos nós sabemos alguma coisa. Todos nós ignoramos alguma coisa. Por isso, aprendemos sempre.