Vigiar e Punir

Vigiar e Punir Michel Foucault




Resenhas - Vigiar e Punir


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Priscilla 12/12/2010

Livro muito bom! Meio difícil de ler, denso, um pouco complicado, mas vale a pena chegar até o final. Tenho que admitir que talvez nao conseguisse terminar não fosse uma prova sobre o assunto, mas ainda bem que ela existiu! Leitura muito interessante, mostra uma visão totalmente inovadora sobre o sistema penal e prisional, destacando que as mazelas das prisões na verdade são intrínsecas a ela dsde seu nascimento e, ainda mais, são inrentes á própria sociedade disciplinar em que vivemos, onde o principal objetivo é separar, individualizar, observar e normalizar através de sanções. Uma sinopse simples de parte do que se pode compreender através do livro.
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RAFA 09/04/2011

Chocante desde a primeira página,onde é descrito a cena de uma pena de morte!Castigos físicos,cadaveres dilacerados,um horror...quase não continuo a leitura.Um livro muito interessante onde mostra a evolução das leis e descreve a arquitetura das prisões.
Eu recomendo!!!
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Garcia 08/07/2011

A história da violência nas prisões
Este livro é um dos clássicos do direito penal, no qual seu autor tenta fazer uma arqueologia do saber que levou o direito penal a punir a ampla maioria dos crimes com a pena de prisão. Livro profundo, filosófico, muito bom.
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João 23/02/2012

Trabalho de extrema lucidez em que se apresenta a experiência penal e suas conexões com a sociedade e o poder.
Vigiar e punir já se consolidou há muito como obra-expoente dentro do rol de trabalhos voltados à compreensão do exercício penal e do fenômeno carcerário na história das sociedades ocidentais modernas.

Foucault, ao debruçar-se somente em torno do caso francês para expor o itinerário da experiência penal moderna, fez-me perceber que apesar do aspecto local de sua investigação e pesquisa, há uma prática penal associada a mecanismos de poder que foi assimilada de forma praticamente homogênea em todo o mundo ocidental. A ponto de vermos crescer nos últimos séculos gerações de pessoas, que a despeito de nascerem num ou noutro lado do atlântico, são formadas e disciplinadas sob hábitos, ordens e crenças muito similares. Além, é claro, de compartilharem uma consciência da qual faz parte um sentimento bastante estável quanto à natureza das medidas punitivas e disciplinares que hoje acompanham quase que indistintamente as principais instituições de confinamento, recrutamento e educação civil.

A leitura de Vigiar e punir permite conhecer dos séculos XVIII, XIX e XX os sentimentos populares e a lógica política que estão por detrás das práticas punitivas exercidas nestas épocas. São razões que juntamente com uma série de outros motivos, sejam eles de ordem econômica, tecnológica, etc., fundamentam o pensamento jurídico criminal de cada época, donde resultam as respectivas vicissitudes da prática penal. Entretanto, talvez o que mais surpreenda na obra do espistemólogo francês seja sua insistência em revelar a cumplicidade das relações de saber e de poder que, no interior das sociedades em que atuam, fazem brotar toda uma série de instituições inclinadas para a manutenção destas mesmas práticas de saber/poder, e que, além disso, criam um senso de ordem e submissão característico daquilo que o autor chama de “sociedade disciplinar”. Como instituição-modelo, a penitenciária – mais precisamente a que segue a disposição panóptica de Bentham – é o carro-chefe dessa organização social, uma vez que impõe disciplinas sobre as quais se pautam a maior parte – se não todas – das demais instituições civis e militares. A saber, os hospitais, nosocômios, quartéis, escolas e toda sorte de entidades que exigem uma organização hierárquica são os pilares estruturais de uma sociedade regida por relações de poder muito bem definidas.

O capítulo do livro que mais me intrigou, e que talvez assim o tenha sido por ser também aquele que carrega os trechos mais sutis, leva o título de “ilegalidade e delinqüência”. Da dicção que ali se faz presente, depreende-se que o fenômeno carcerário que se instaurou ao longo dos últimos séculos, e que se mostra renitente em seu fracasso, vem exatamente a calhar com os objetivos de ordem social impostos pelo domínio de uma classe elitizada. Alarmam-me as proposições de Foucault que denunciam o forjado círculo vicioso da delinqüência, uma questão evidenciada pelo fenômeno da reincidência criminal e que constitui o principal indicativo do fracasso carcerário em seus propósitos de correção e ressocialização dos condenados. A delinqüência como manobra política sustentada por uma classe, eis o assombro que ora suscita essa parte final do livro.

Enfim, uma obra que a mim como principiante nos estudos do Direito foi de grande impacto. Uma obra, cujo cunho pode muito bem orientar os educadores, juristas, sociólogos etc., interessados nos temas vinculados às políticas educacionais e às reformas jurídico-penais. Por fim, seria de bom alvitre tê-la como leitura obrigatória nos últimos anos da educação escolar.
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Anna 14/05/2024

Estruturas e Camadas.
Como boa estudante de direito, tive que ler (leitura obrigatória) mas como penal é minha matéria favorita, então relevo.

Confesso que eu não pude deixar de ter um ponto de vista antropológico e sociológico (creio que seria impossível não ter), possuindo camadas, mesmo sendo um livro antigo, falando abertamente sobre a violência dentro dos sistemas penitenciários, possuindo também uma linguagem indireta como se possuísse uma mensagem em seu conteúdo, repetindo palavras como ?Poder? e Disciplina?.
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Thiago Boesing 11/08/2018

sempre vigiado.
1 – SUPLÍCIOS
No começo do século XVII os suplícios vão se extinguido, passando a ser usado a privação dos direitos, pois o governo se enfraquecia com a tortura. Com isso as penas agem sobre a alma do criminoso, e a justiça deve julgar cada caso específico.
Os suplícios eram as torturas em praça pública, que variavam de acordo com a intensidade do crime, todo o processo do crime na justiça era secreto. Os interrogatórios eram usados para que o condenado confessasse o crime, mas o mesmo muitas vezes confessava o crime para ser morto logo. A tortura acontecia porque quando ocorria um crime estava atacando o poder do príncipe e com isso ele punia com a morte.
Os suplícios foram se acabando porque a população se revoltava com algumas injustiças e o governo temia revoltas.

2 – PUNIÇÃO
Com o desaparecimento dos suplícios, a lei continua punindo só que mais na alma do que no corpo. Os crimes do século XVIII eram mais sobre o patrimônio do que sobre a vida. Usar a punição com universalidade a todos. O direito de punir se tornou á defesa da sociedade. Calcular um pena não em função do crime mais de sua possível repetição.
O crime só é cometido porque traz vantagens, a pena é a desvantagem, e a solidão a arma para que ele reflita sobre seus atos. As leis devem ser públicas e facilmente compreendidas, a verdade do crime só poderá ser admitida uma vez que totalmente comprovada, e as penas devem ser individuais.
A lei deve diminuir o desejo que torna o crime atraente. A solidão repara o crime a dor não, a pena deve ser visível a toda a população. A prisão era cercada de abusos de poder, dai cria-se o trabalho, e a disciplina para a correção do condenado. Cria-se uma vigilância ininterrupta sobre os detentos.

3 - DISCIPLINA
A disciplina fabrica indivíduos uteis ao estado e destrói qualquer ideia de revolta. Para que de certo a arte da disciplina é preciso: separar por grupos os indivíduos (a fim de evitar brigas), romper a comunicação excessiva, criar quadros para distribuir os melhores dos piores. Todo o tempo é rigorosamente divido e o mesmo deve ser usado somente para o trabalho. O corpo disciplinado é a base de um gesto eficiente. Corpos treinados para serem uteis não racionais. Desde criança são moldadas para a disciplina. A obediência era pronta e cega. A disciplina é a tática do estado de se proteger de revoltas e manipular a população para o que deseja.
A disciplina precisa de uma observação constante e monitorada, a vigilância é dividida para não haver falhas. Cada falha, atraso representava um tipo de castigo, usado para não perder a disciplina. Porém as recompensas pelo trabalhos feitos devem ser maiores que as punições.
Cria-se o exame que consiste basicamente em dividir os melhores dos piores, onde continham todas as informações de cada um para um controle rigoroso e minucioso.
Com a criação do panoptismo, a arte de individualizar também cria um cadastro pessoal de cada um. O panoptismo funciona da seguinte maneira, uma construção em anel no centro, rodeada de uma construção circular divida em celas, e na torre central fica um vigia que cuida de todas as celas. No panoptismo vê se tudo sem nunca ser visto pelos outros, funciona como um laboratório do poder. O estado cria postos de saúde, postos de policias em cada região com o intuito além de ajudar, mas também de monitorar cada um. Essa vigilância custava muito pouco ao estado. Colocar a disciplina em pontos chaves como escola, exercito assim a disciplina nunca para de crescer e fortalecer o estado.

4 - PRISÃO
É uma aparelhagem geral para tornar os indivíduos dóceis, por meio de uma vigilância ininterrupta que se divide em: isolamento (evitar complôs e fazer refletir sobre o ato), trabalho assalariado (para docilizar o individuo e dar um futuro depois da prisão), pena (deve variar de acordo com o comportamento do individuo). A carroça onde transportavam os presos que antes era aberta e passava em meio a multidão, transforma-se em um transporte fechado e restrito aos olhos da população (afim de evitar revoltas contra os condenados).
Segundo alguns críticos a prisão: não diminuía a criminalidade, provocava a reincidência dos presos, torna mais fácil a organização de grupos de delinquentes, e faz cair em miséria a família do detento que provavelmente virara delinquente também.
Com tudo criam-se as sete normas universais da prisão: principio da correção, da classificação (maiores crimes, menores crimes), modulação das penas, trabalho como obrigação, educação, controle, instituições anexas (hospitais, escolas quando o detento deixa a prisão).
A lei é feita para alguns e se aplica a outros. Controlar as ilegalidades com disciplina desde as crianças para não virarem delinquentes, pois senão cria-se um ciclo vicioso (Policia-prisão-delinquência). Os jornais não mostravam os grandes crimes, somente as delinquências que eram sempre de classes baixas.
A mínima falta deve ser punida, a disciplina torna-se uma "disciplina" na escola, quando se vai para a prisão só está se continuando um processo por isso ocorre naturalmente (escolas-hospitais-prisão-asilos).


Crítica do livro
No século XVII as torturas eram físicas e feitas para mostrar o que aconteceria caso alguém desobedecesse às ordens do rei. Hoje ela se torna moral, e quem exerce primeiramente essa tortura é a escola que pelo simples fato de ter um certificado, molda conforme ela queira e transforma os indivíduos em trabalhadores. E cria-se um lazer para que esses “trabalhadores” não reivindiquem seus direitos, iniciando assim um ciclo vicioso de moldagem (escola-trabalho-diversão).
Somos adestrados desde pequenos a nos tornar todos “normais, iguais”, seja no transito escola, trabalho. Nosso tempo é roubado e moldado pelas normas, e quem não se adaptar terá seu lugar reservado no sistema prisional. Mesmo caso que acontecia em meados do século XVII, com a implantação das normas e do sistema prisional.
Quando acertamos ganhamos um prêmio, quando erramos somos punidos (somo igual à, por exemplo, um cachorro), e hoje não somos mais vigiados pessoalmente, mais por câmeras que não perdem nada e arquivam tudo para qualquer hora poderem nos incriminar.

Essa questão de prisão/punição é uma mera historia, pois todos os dias somos vigiados e temos normas a cumprimos (igual à cadeia). E a grande causa de tudo isso é crescermos sem consentimento de informações e assim somos facilmente dominados, portanto INFORMAÇÂO É PODER.
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Jônatas 16/05/2013

Fichamento vigiar e punir


FICHAMENTO:



VIGIAR E PUNIR

MICHEL FOUCALT

Editora vozes, 27º edição ; Petrópolis 1999
Tradução de Raquel Ramalhete





















Vitoria da conquista
30/01/2013
Primeira parte : suplícios
Capítulo I: o corpo dos condenados


[Damiens fora condenado, a 2 de março de 1757], a pedir perdão publicamente diante da poria principal da Igreja de Paris [aonde devia ser] levado e acompanhado numa carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras; [em seguida], na dita carroça, na praça de Greve, e sobre um patíbulo que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de enxofre, e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento.
Finalmente foi esquartejado [relata a Gazette d’Amsterdam]. Essa última operação foi muito longa, porque os cavalos utilizados não estavam afeitos à tração; de modo que, em vez de quatro, foi preciso colocar seis; e como isso não bastasse, foi necessário, para desmembrar as coxas do infeliz, cortar-lhe os nervos e retalhar-lhe as juntas... (pág.8)

O afrouxamento da severidade penal no decorrer dos últimos séculos é um fenômeno bem conhecido dos historiadores do direito. Entretanto, foi visto, durante muito tempo, de forma geral, como se fosse fenômeno quantitativo: menos sofrimento, mais suavidade, mais respeito e “humanidade”. Na verdade, tais modificações se fazem concomitantes ao deslocamento do objeto da ação punitiva. Redução de intensidade? Talvez. Mudança de objetivo, certamente.
Se não é mais ao corpo que se dirige a punição, em suas formas mais duras, sobre o que, então, se exerce? A resposta dos teóricos — daqueles que abriram, por volta de 1780, o período que ainda não se encerrou — é simples, quase evidente. Dir-se-ia inscrita na própria indagação. Pois não é mais o corpo, é a alma. À expiação que tripudia sobre o corpo deve suceder um castigo que atue, profundamente, sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições. Mably formulou o princípio decisivo:

Que o castigo, se assim posso exprimir, fira mais a alma do que o corpo.(pág.20)

Do grande livro de Rusche e Kirchheimer podemos guardar algumas referências essenciais. Abandonar em primeiro lugar a ilusão de que a penalidade é antes de tudo (se não exclusivamente) uma maneira de reprimir os delitos e que nesse papel, de acordo com as formas sociais, os sistemas políticos ou as crenças, ela pode ser severa ou indulgente, voltar-se para a expiação ou procurar obter uma reparação, aplicar-se em perseguir o indivíduo ou em atribuir responsabilidades coletivas. Analisar antes os “sistemas punitivos concretos”, estudá-los como fenômenos sociais que não podem ser explicados unicamente pela armadura jurídica da sociedade nem por suas opções éticas fundamentais; recolocá-los em seu campo
de funcionamento onde a sanção dos crimes não é o único elemento; mostrar que as medidas punitivas não são simplesmente mecanismos “negativos” que permitem reprimir, impedir, excluir, suprimir; mas que elas estão ligadas a toda uma série de efeitos positivos e úteis que elas têm por encargo sustentar (e nesse sentido, se os
castigos legais são feitos para sancionar as infrações, pode-se dizer que a definição das infrações e sua repressão são feitas em compensação para manter os mecanismos punitivos e suas funções).(pág.28)

Que as punições em gera! e a prisão se originem de uma tecnologia política do corpo, talvez me tenha ensinado mais pelo presente do que pela história. Nos últimos anos, houve revoltas em prisões em muitos lugares do mundo. Os objetivos que tinham, suas palavras de ordem, seu desenrolar tinham certamente qualquer coisa de paradoxal. Eram revoltas contra toda uma miséria física que dura há mais de um século: contra o frio, contra a sufocação e o excesso de população, contra as paredes velhas, contra a fome, contra os golpes. Mas eram também revoltas contra as prisões-modelos, contra os tranqüilizantes, contra o isolamento, contra o serviço médico ou educativo. Revoltas cujos objetivos eram só materiais? Revoltas contraditórias contra a decadência, e ao mesmo tempo contra o conforto; contra os guardas, e ao mesmo tempo contra os psiquiatras? De fato, tratava-se realmente dos corpos e de coisas materiais em todos esses movimentos: como se trata disso nos inúmeros discursos que a prisão tem produzido desde o começo do século XIX.(pág.33)

Capitulo II
A ostentação dos suplícios

A ordenação de 1670 regeu, até à Revolução, as formas gerais da prática penal.Eis a hierarquia dos castigos por ela descritos:
A morte, a questão com reserva de provas, as galeras, o açoite, a confissão pública, o banimento. As penas físicas tinham, portanto, uma parte considerável. Os costumes, a natureza dos crimes, o status dos condenados as faziam variar ainda mais. A pena de morte natural compreende todos os tipos de morte: uns podem ser condenados à forca, outros a ter a mão ou a língua cortada ou furada e ser enforcados em seguida; outros, por crimes mais graves, a ser arrebentados vivos e expirar na roda depois de ter os membros arrebentados; outros a ser arrebentados até a morte natural, outros a ser estrangulados e em seguida arrebentados, outros a ser queimados vivos, outros a ser queimados depois de estrangulados; outros a ter a língua cortada ou furada, e em seguida queimados vivos; outros a ser puxados por quatro cavalos, outros a ter a cabeça cortada, outros enfim a ter a cabeça quebrada.1 [E Soulatges, de passagem, acrescenta que há também penas leves, de que a Ordenação não fala]. satisfação à pessoa ofendida,admoestação, repreensão, prisão temporária, abstenção de um lugar, e enfim as penas pecuniárias — muitas ou confiscação.
Não devemos no entanto nos enganar. Entre esse arsenal de horror e a prática cotidiana da penalidade, a margem era grande. Os suplícios não constituíam as penas mais freqüentes, longe disso. Sem dúvida para nossos olhos atuais a proporção de veredictos de morte, na penalidade da era clássica, pode parecer considerável: as
decisões do Châtelet durante o período de 1755 a 1785 comportam 9 a 10% de penas capitais — roda, forca ou fogueira2; em 260 sentenças, o Parlamento de Flandres pronunciou 39 condenações à morte, de 1721 a 1730 (e 26 em 500 entre 1781 e 1790).3 Mas não se deve esquecer que os tribunais encontravam muitos meios de abrandar os rigores da penalidade regular, seja recusando-se a levar adiante processos quando as infrações eram exageradamente castigadas, seja modificando a qualificação do crime; às vezes também o próprio poder real indicava não aplicar estritamente tal ordenação particularmente severa.4 De qualquer modo, a maior parte
das condenações era banimento ou multa: numa jurisprudência como a do Châtelet (que só conhecia delitos relativamente graves) o banimento representou, entre 1755 e 1785, mais da metade das penas aplicadas. Ora, grande parte dessas penas não corporais era acompanhada a título acessório de penas que comportavam uma dimensão de suplício: exposição, roda, coleira de ferro, açoite, marcação com ferrete; era a regra para todas as condenações às galeras ou ao equivalente para as mulheres — a reclusão no hospital; o banimento era muitas vezes precedido pela exposição e pela marcação com ferrete; a multa, às vezes, era acompanhada de
açoite. Não só nas grandes e solenes execuções, mas também nessa forma anexa é que o suplício manifestava a parte significativa que tinha na penalidade; qualquer pena um pouco séria devia incluir alguma coisa do suplício.

Que é um suplício?

Pena corporal, dolorosa, mais ou menos atroz [dizia Jaucourt]; e acrescentava: é um fenômeno inexplicável a extensão da imaginação dos homens para a barbárie e a crueldade. (pág.35)

O corpo supliciado se insere em primeiro lugar no cerimonial judiciário que deve trazer à luz a verdade do crime. Na França, como na maior parte dos países europeus — com a notável exceção
da Inglaterra — todo o processo criminal, até à sentença,permanecia secreto: ou seja opaco não só para o público mas para o próprio acusado. O processo se desenrolava sem ele. ou pelo menos sem que ele pudesse conhecer a acusação, as imputações, os depoimentos, as provas. Na ordem da justiça criminal, o saber era privilégio absoluto da acusação. “O mais diligente e o mais secretamente que se puder fazer”, dizia, a respeito da instrução, o edito de 1498. De acordo com a ordenação de 1670, que resumia, e em alguns pontos reforçava, a severidade da época precedente, era impossível ao acusado ter acesso às peças do processo, impossível conhecer a
identidade dos denuncia-dores, impossível saber o sentido dos depoimentos antes de recusar as testemunhas, impossível fazer valer, até os últimos momentos do processo, os fatos justificativos, impossível ter um advogado, seja para verificar a
regularidade do processo, seja para participar da defesa. Por seu lado, o magistrado tinha o direito de receber denúncias anônimas, de esconder ao acusado a natureza da causa, de interrogá-lo de maneira capciosa, de usar insinuações. Ele constituía, sozinho e com pleno poder, uma verdade com a qual investia o acusado; e essa verdade, os juízes a recebiam pronta, sob a forma de peças e de relatórios escritos; para eles, esses documentos sozinhos comprovavam; só encontravam o acusado uma vez para interrogá-lo antes de dar a sentença. A forma secreta e escrita do processo confere com o principio de que em matéria criminal o estabelecimento da verdade era para o soberano e seus juizes um direito.(pág.38)

segunda parte: punição

capitulo I: punição generalizada

Que as penas sejam moderadas e proporcionais aos delitos, que a de morte só sejaimputada contra os culpados assassinos, e sejam abolidos os suplícios que revoltem a
humanidade.1
O protesto contra os suplícios é encontrado em toda parte na segunda metade
do século XVIII: entre os filósofos e teóricos do direito; entre juristas, magistrados,
parlamentares; nos chaiers de doléances2 e entre os legisladores das assembléias. É
preciso punir de outro modo: eliminar essa confrontação física entre soberano e
condenado; esse conflito frontal entre a vingança do príncipe e a cólera contida do
povo, por intermédio do supliciado e do carrasco. O suplício tornou-se rapidamente
intolerável. Revoltante, visto da perspectiva do povo, onde ele revela a tirania, o
excesso, a sede de vingança e o “cruel prazer de punir”.3 Vergonhoso, considerado
da perspectiva da vítima, reduzida ao desespero e da qual ainda se espera que
bendiga “o céu e seus juizes por quem parece abandonada”.4 Perigoso de qualquer
modo, pelo apoio que nele encontram, uma contra a outra, a violência do rei e a do
povo. Como se o poder soberano não visse, nessa emulação de atrocidades, um
desafio que ele mesmo lança e que poderá ser aceito um dia: acostumado a “ver
correr sangue”, o povo aprende rápido que “só pode se vingar com sangue”.5 Nessas
cerimônias que são objeto de tantas investidas adversas, percebem-se o choque e a
desproporção entre a justiça armada e a cólera do povo ameaçado. Nessa relação
Joseph de Maistre reconhecerá um dos mecanismos fundamentais do poder absoluto:
o carrasco forma a engrenagem entre o príncipe e o povo; a morte que ele leva é
como a dos camponeses escravizados que construíram São Petersburgo por cima dos
pântanos e das pestes: ela é princípio de universalidade; da vontade singular do
déspota, ela faz uma lei para todos, e de cada um desses corpos destruídos, uma
pedra para o Estado; que importa que atinja inocentes! Nessa mesma violência, ritual
e dependente do caso, os reformadores do século XVIII denunciaram, ao contrário, o
que excede, de um lado e de outro, o exercício legítimo do poder: a tirania, segundo
eles, se opõe à revolta; elas se reclamam reciprocamente. Duplo perigo. É preciso
que a justiça criminal puna em vez de se vingar.(pág.25)



Capitulo II: mitigação das penas


A arte de punir deve portanto repousar sobre toda uma tecnologia da representação.
A empresa só pode ser bem sucedida se estiver inscrita numa mecânica natural.
Semelhante à gravitação dos corpos, uma força secreta nos empurra sempre para
nosso bem-estar. Esse impulso só é afetado pelos obstáculos que as leis lhe opõem.
Todas as várias ações do homem são efeitos dessa tendência interior.
Encontrar para um crime o castigo que convém é encontrar a desvantagem cuja
idéia seja tal que torne definitivamente sem atração a idéia de um delito. É uma arte
das energias que se combatem, arte das imagens que se associam, fabricação de
ligações estáveis que desafiem o tempo. Importa constituir pares de representação de
valores opostos, instaurar diferenças quantitativas entre as forças em questão,
estabelecer um jogo de sinais-obstáculos que possam submeter o movimento das
forças a uma relação de poder.
Que a idéia do suplício esteja sempre presente no coração do homem fraco e
domine o sentimento que o arrasta para o crime.1
Esses sinais-obstáculos devem constituir o novo arsenal das penas, como as
marcas-vinditas organizavam os antigos suplícios. Mas, para funcionar, têm que
obedecer a várias condições:
1) Ser tão pouco arbitrários quanto possível. É verdade que é a sociedade que
define, em função de seus interesses próprios, o que deve ser considerado como
crime: este, portanto, não é natural. Mas se queremos que a punição possa sem
dificuldade apresentar-se ao espírito assim que se pensa no crime, é preciso que, de
um ao outro, a ligação seja a mais imediata possível: de semelhança, de analogia, de
proximidade. É preciso dar
à pena toda a conformidade possível com a natureza de delito, a fim de que o medo de um
castigo afaste o espírito do caminho por onde era levado na perspectiva de um crime
vantajoso.2
A punição ideal será transparente ao crime que sanciona; assim, para quem a
contempla, ela será infalivelmente o sinal do crime que castiga; e para quem sonha
com o crime, a simples idéia do delito despertará o sinal punitivo. Vantagem para a
estabilidade da ligação, vantagem para o cálculo das proporções entre crime e
castigo e para a leitura quantitativa dos interesses; pois tomando a forma de uma
conseqüência natural, a punição não aparece como o efeito arbitrário de um poder
humano:
Tirar ao castigo o delito é a melhor maneira de proporcionar a punição ao crime. Se
é isso o triunfo da justiça, é também o triunfo da liberdade, pois então, não vindo mais
penas da vontade do legislador, mas da natureza das coisas, não se vê mais o homem
fazer violência ao homem. (pág.125)

Em todo caso, pode-se dizer que os encontramos no fim do século XVIII
diante de três maneiras de organizar o poder de punir. A primeira é a que ainda
estava funcionando e se apoiava no velho direito monárquico. As outras se referem,
ambas, a uma concepção preventiva, utilitária, corretiva de um direito de punir que
pertenceria à sociedade inteira; mas são muito diferentes entre si, ao nível dos
dispositivos que esboçam. Esquematizando muito, poderíamos dizer que, no direito
monárquico, a punição é um cerimonial de soberania; ela utiliza as marcas rituais da
vingança que aplica sobre o corpo do condenado; e estende sob os olhos dos
espectadores um efeito de terror ainda mais intenso por ser descontínuo, irregular e
sempre acima de suas próprias leis, a presença física do soberano e de seu poder. No
projeto dos juristas reformadores, a punição é um processo para requalificar os
indivíduos como sujeitos de direito; utiliza, não marcas, mas sinais, conjuntos
codificados de representações, cuja circulação deve ser realizada o mais rapidamente
possível pela cena do castigo, e a aceitação deve ser a mais universal possível.
Enfim no projeto de instituição carcerária que se elabora, a punição é uma técnica de
coerção dos indivíduos; ela utiliza processos de treinamento do corpo — não sinais
— com os traços que deixa, sob a forma de hábitos, no comportamento; e ela supõe
a implantação de um poder específico de gestão da pena. O soberano e sua força, o
corpo social, o aparelho administrativo. A marca, o sinal, o traço. A cerimônia, a
representação, o exercício. O inimigo vencido, o sujeito de direito em vias de
requalificação, o indivíduo submetido a uma coerção imediata. O corpo que é
supliciado, a alma cujas representações são manipuladas, o corpo que é treinado;
temos aí três séries de elementos que caracterizam os três dispositivos que se
defrontam na última metade do século XVIII. Não podemos reduzi-los nem a teorias
de direito (se bem que eles lhes sejam paralelos) nem identificá-los a aparelhos ou a
instituições (se bem que se apoiem sobre estes), nem fazê-los derivar de escolhas
morais (se bem que nelas encontrem eles suas justificações). São modalidades de
acordo com as quais se exerce o poder de punir. Três tecnologias de poder.
O problema é então o seguinte: como é possível que o terceiro se tenha
finalmente imposto? Como o modelo coercitivo, corporal, solitário, secreto, do
poder de punir substitui o modelo representativo, cênico, significante, público,
coletivo? Por que o exercício físico da punição (e que não é o suplício) substituiu,
com a prisão que é seu suporte institucional, o jogo social dos sinais de castigo, e da
festa bastarda que os fazia circular? (pág.151)

terceira parte: disciplina
Capitulo I: os corpos dóceis


Eis como ainda no início do século XVII se descrevia a figura ideal do soldado.
soldado é antes de tudo alguém que se reconhece de longe; que leva os sinais
naturais de seu vigor e coragem, as marcas também de seu orgulho: seu corpo é o
brasão de sua força e de sua valentia; e se é verdade que deve aprender aos poucos
ofício das armas — essencialmente lutando — as manobras como a marcha, as
atitudes como o porte da cabeça se originam, em boa parte, de uma retórica corporal
da honra:
Os sinais para reconhecer os mais idôneos para esse ofício são a atitude viva e
alerta, a cabeça direita, o estômago levantado, os ombros largos, os braços longos, os
dedos fortes, o ventre pequeno, as coxas grossas, as pernas finas e os pés secos, pois o
homem desse tipo não poderia deixar de ser ágil e forte: [tornado lanceiro, o soldado]
deverá ao marchar tomar a cadência do passos para ter o máximo de graça e gravidade que for possível, pois a Lança é uma arma honrada e merece ser levada com um porte grave e audaz.
Segunda metade do século XVIII: o soldado tornou-se algo que se fabrica; de
uma massa informe, de um corpo inapto, fez-se a máquina de que se precisa;
corrigiram-se aos poucos as posturas; lentamente uma coação calculada percorre
cada parte do corpo, se assenhoreia dele, dobra o conjunto, torna-o perpetuamente
disponível, e se prolonga, em silêncio, no automatismo dos hábitos; em resumo, foi
“expulso o camponês” e lhe foi dada a “fisionomia de soldado”.2 Os recrutas são
habituados a manter a cabeça ereta e alta; a se manter direito sem curvar as costas, a fazer avançar o ventre, a salientar o peito, e encolher o dorso; e a fim de que se habituem, essa posição lhes será dada apoiando-os contra um muro, de maneira que os calcanhares, a batata da perna, os ombros e a cintura encostem nele, assim como as costas das mãos, virando os braços para fora, sem afastá-los do corpo... ser-lhes-á igualmente ensinado a nunca fixar os olhos na terra, mas a olhar com ousadia aqueles diante de quem eles passam... a ficar imóveis esperando o comando, sem mexer a cabeça, as mãos nem os pés... enfim amarchar com passo firme, com o joelho e a perna esticados, a ponta baixa e para foram... (pág.163)

É possível que a guerra como estratégia seja a continuação da política. Mas
não se deve esquecer que a “política” foi concebida como a continuação senão exata
e diretamente da guerra, pelo menos do modelo militar como meio fundamental para
prevenir o distúrbio civil. A política, como técnica da paz e da ordem internas,
procurou pôr em funcionamento o dispositivo do exército perfeito, da massa
disciplinada, da tropa dócil e útil, do regimento no acampamento e nos campos, na
manobra e no exercício. Nos grandes Estados do século XVIII, o exército garante a
paz civil sem dúvida porque é uma força real, uma espada sempre ameaçadora, mas
também porque é uma técnica e um saber que podem projetar seu esquema sobre o
corpo social. Se há uma série guerra-política que passa pela estratégia, há uma série
exército-política que passa pela tática. É a estratégia que permite compreender a
guerra como uma maneira de conduzir a guerra entre os Estados; é a tática que
permite compreender o exército como um princípio para manter a ausência de guerra
na sociedade civil. A era clássica viu nascer a grande estratégia política e militar
segundo a qual as nações defrontam suas forças econômicas e demográficas; mas
viu nascer também a minuciosa tática militar e política pela qual se exerce nos
Estados o controle dos corpos e das forças individuais. “O” militar — a instituição
militar, o personagem do militar, a ciência militar, tão diferentes do que
caracterizava antes o “homem de guerra” — se especifica, durante esse período, no
ponto de junção entre a guerra e os ruídos da batalha por um lado, a ordem e o
silêncio obediente da paz por outro. O sonho de uma sociedade perfeita é facilmente
atribuído pelos historiadores aos filósofos e juristas do século XVIII; mas há
também um sonho militar da sociedade; sua referência fundamental era não ao
estado de natureza, mas às engrenagens cuidadosamente subordinadas de uma
máquina, não ao contrato primitivo, mas às coerções permanentes, não aos direitos
fundamentais, mas aos treinamentos indefinidamente progressivos, não à vontade
geral mas à docilidade automática.
Dever-se-ia tomar a disciplina nacional [dizia Guibert].
O Estado que eu idealizo terá uma administração simples, sólida, fácil de governar.
Parecerá com essas imensas máquinas, que com molas pouco complicadas produzem
grandes efeitos; a força desse Estado nascerá de sua força, sua prosperidade de sua
prosperidade. O tempo que destrói tudo aumentará sua potência. Ele desmentirá esse
preconceito vulgar que leva a imaginar que os impérios estão submetidos a uma lei
imperiosa de decadência e ruína.60
O regime napoleônico não está longe e com ele essa forma de Estado que lhe
subsistirá e que não se deve esquecer que foi preparado por juristas mas também por
soldados, conselheiros de Estado e oficiais baixos, homens de lei e homens de
acampamento. A referência romana que acompanha essa formação inclui claramente
esse duplo índice: os cidadãos e os legionários, a lei e a manobra. Enquanto os
juristas procuravam no pacto um modelo primitivo para a construção ou a
reconstrução do corpo social, os militares e com eles os técnicos da disciplina
elaboravam processos para a coerção individual e coletiva dos corpos.(pág.194)

Capitulo II :
Os recursos para o bom adestramento

Walhausen, bem no início do século XVII, falava da “correta disciplina”, como uma
arte do “bom adestramento”.1 O poder disciplinar é com efeito um poder que, em
vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior “adestrar”; ou sem dúvida
adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor. Ele não amarra as forças
para reduzi-las; procura ligá-las para multiplicá-las e utilizá-las num todo. Em vez
de dobrar uniformemente e por massa tudo o que lhe está submetido, separa, analisa,
diferencia, leva seus processos de decomposição até às singularidades necessárias e
suficientes. “Adestra” as multidões confusas, móveis, inúteis de corpos e forças para
uma multiplicidade de elementos individuais — pequenas células separadas,
autonomias orgânicas, identidades e continuidades genéticas, segmentos
combinatórios. A disciplina “fabrica” indivíduos; ela é a técnica específica de um
poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos
de seu exercício. Não é um poder triunfante que, a partir de seu próprio excesso,
pode-se fiar em seu superpoderio; é um poder modesto, desconfiado, que funciona a
modo de uma economia calculada, mas permanente. Humildes modalidades,
procedimentos menores, se os compararmos aos rituais majestosos da soberania ou
aos grandes aparelhos do Estado. E são eles justamente que vão pouco a pouco
invadir essas formas maiores, modificar-lhes os mecanismos e impor-lhes seus
processos. O aparelho judiciário não escapará a essa invasão, mal secreta. O sucesso
do poder disciplinar se deve sem dúvida ao uso de instrumentos simples: o olhar
hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação num procedimento que lhe é
específico, o exame. (pág.195)

O exame combina as técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção que
normaliza. É um controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar,
classificar e punir. Estabelece sobre os indivíduos uma visibilidade através da qual
eles são diferenciados e sancionados. É por isso que, em todos os dispositivos de
disciplina, o exame é altamente ritualizado. Nele vêm-se reunir a cerimônia do poder
e a forma da experiência, a demonstração da força e o estabelecimento da verdade.
No coração dos processos de disciplina, ele manifesta a sujeição dos que são
percebidos como objetos e a objetivação dos que se sujeitam. A superposição das
relações de poder e das de saber assume no exame todo o seu brilho visível. Mais
uma inovação da era clássica que os historiadores deixaram na sombra. Faz-se a
história das experiências com cegos de nascença, meninos-lobo ou com a hipnose.
Mas quem fará a história mais geral, mais vaga, mais determinante também, do
“exame” — de seus rituais, de seus métodos, de seus personagens e seus papéis, de
seus jogos de perguntas e respostas, de seus sistemas de notas e de classificação?
Pois nessa técnica delicada estão comprometidos todo um campo de saber, todo um
tipo de poder. Fala-se muitas vezes da ideologia que as “ciências” humanas
pressupõem, de maneira discreta ou declarada. Mas sua própria tecnologia, esse
pequeno esquema operatório que tem tal difusão (da psiquiatria à pedagogia, do
diagnóstico das doenças à contratação de mão-de-obra), esse processo tão familiar
do exame, não põe em funcionamento, dentro de um só mecanismo, relações de
poder que permitem obter e constituir saber? O investimento político não se faz
simplesmente ao nível da consciência, das representações e no que julgamos saber,
mas ao nível daquilo que torna possível algum saber.
Uma das condições essenciais para a liberação epistemológica da medicina no
fim do século XVIII foi a organização do hospital como aparelho de “examinar”. O
ritual da visita é uma de suas formas mais evidentes. No século XVII, o médico,
vindo de fora, juntava a sua inspeção vários outros controles — religiosos,
administrativos; não participava absolutamente da gestão cotidiana do hospital.
Pouco a pouco a visita tornou-se mais regular, mais rigorosa, principalmente mais
extensa: ocupou uma parte cada vez mais importante do funcionamento hospitalar.
Em 1661, o médico do Hotel-Dieu de Paris era encarregado de uma visita por dia;
em 1687, um médico “expectante” devia examinar, à tarde, certos doentes mais
graves. Os regulamentos do século XVIII determinam os horários da visita, e sua
duração (duas horas no mínimo); insistem para que um rodízio permita que seja
realizado todos os dias “inclusive domingo de Páscoa”; enfim em 1771 institui-se
um médico residente, encarregado de “prestar todos os serviços de seu estado, tanto
de noite como de dia, nos intervalos entre uma visita e outra de um médico de
fora”.19 A inspeção de antigamente, descontínua e rápida, se transforma em uma
observação regular que coloca o doente em situação de exame quase perpétuo. Com
duas conseqüências: na hierarquia interna, o médico, elemento até então exterior,
começa a suplantar o pessoal religioso e a lhe confiar um papel determinado mas
subordinado, na técnica do exame; aparece então a categoria do “enfermeiro”;
quanto ao próprio hospital, que era antes de tudo um local de assistência, vai tornarse
local de formação e aperfeiçoamento científico: viravolta das relações de poder e
constituição de um saber. O hospital bem “disciplinado” constituirá o local
adequado da “disciplina” médica; esta poderá então perder seu caráter textual e
encontrar suas referências menos na tradição dos autores decisivos que num campo
de objetos perpetuamente oferecidos ao exame. (pág.210)

Capitulo III:
O panoptismo

Eis as medidas que se faziam necessárias, segundo um regulamento do fim do século
XVII, quando se declarava a peste numa cidade.
Em primeiro lugar, um policiamento espacial estrito: fechamento, claro, da
cidade e da “terra”, proibição de sair sob pena de morte, fim de todos os animais
errantes; divisão da cidade em quarteirões diversos onde se estabelece o poder de um
intendente. Cada rua é colocada sob a autoridade de um síndico; ele a vigia; se a
deixar, será punido de morte. No dia designado, ordena-se todos que se fechem em
suas casas: proibido sair sob pena de morte. O próprio síndico vem fechar, por fora,
a porta de cada casa; leva a chave, que entrega ao intendente de quarteirão; este a
conserva até o fim da quarentena. Cada família terá feito suas provisões; mas para o
vinho e o pão, se terá preparado entre a rua e o interior das casas pequenos canais de
madeira, que permitem fazer chegar a cada um sua ração, sem que haja comunicação
entre os fornecedores e os habitantes; para a carne, o peixe e as verduras, utilizam-se
roldanas e cestas. Se for absolutamente necessário sair das casas, tal se fará por
turnos, e evitando-se qualquer encontro. Só circulam os intendentes, os síndicos, os
soldados da guarda e também entre as casas infectadas, de um cadáver ao outro, os
“corvos”, que tanto faz abandonar à morte: é “gente vil, que leva os doentes, enterra
os mortos, limpa e faz muitos ofícios vis e abjetos”. Espaço recortado, imóvel,
fixado. Cada qual se prende a seu lugar. E, caso se mexa, corre perigo de vida, por
contágio ou punição.
A inspeção funciona constantemente. O olhar está alerta em toda parte: “Um
corpo de milícia considerável, comandado por bons oficiais e gente de bem”, corpos
de guarda nas portas, na prefeitura e em todos os bairros para tornar mais pronta a
obediência do povo, e mais absoluta a autoridade dos magistrados, “assim como
para vigiar todas as desordens, roubos e pilhagens”. Às portas, postos de vigilância;
no fim de cada rua, sentinelas. Todos os dias, o intendente visita o quarteirão de que
está encarregado, verifica se os síndicos cumprem suas tarefas, se os habitantes têm
queixas; eles “fiscalizam seus atos”. Todos os dias também o síndico passa na rua
por que é responsável; pára diante de cada casa; manda colocar todos os moradores
às janelas (os que habitassem nos fundos teriam designada uma janela dando para a
rua onde ninguém mais poderia se mostrar); chama cada um por seu nome; informase
do estado de todos, um por um — “no que os habitantes serão obrigados a dizer a
verdade, sob pena de morte”; se alguém não se apresentar à janela, o síndico deve
perguntar a razão: “Ele assim descobrirá facilmente se escondem mortos ou
doentes”. Cada um trancado em sua gaiola, cada um à sua janela, respondendo a seu
nome e se mostrando quando é perguntado, é a grande revista dos mortos e dos
vivos.(pág.220)

O procedimento do inquérito na Idade Média foi imposto à velha justiça
acusatória, mas por um processo vindo de cima; já a técnica disciplinar invadiu,
insidiosamente e como que por baixo, uma justiça penal que é ainda, em seu
princípio, inquisitória. Todos os grandes movimentos de derivação que caracterizam
a penalidade moderna — a problematização do criminoso por trás de seu crime, a
preocupação com uma punição que seja correção, terapêutica, normalização, a
divisão do ato do julgamento entre diversas instâncias que devem, segundo se
espera, medir, avaliar, diagnosticar, curar, transformar os indivíduos — tudo isso trai
a penetração do exame disciplinar na inquisição judiciária.
O que agora é imposto à justiça penal como seu ponto de aplicação, seu objeto
“útil”, não será mais o corpo do culpado levantado contra o corpo do rei; não será
mais tampouco o sujeito de direito de um contrato ideal; mas o indivíduo disciplinar.
O ponto extremo da justiça penal no Antigo Regime era o retalhamento infinito do
corpo do regicida: manifestação do poder mais forte sobre o corpo do maior
criminoso, cuja destruição total faz brilhar o crime em sua verdade. O ponto ideal da
penalidade hoje seria a disciplina infinita: um interrogatório sem termo, um
inquérito que se prolongasse sem limite numa observação minuciosa e cada vez mais
analítica, um julgamento que seja ao mesmo tempo a constituição de um processo
nunca encerrado, o amolecimento calculado de uma pena ligada à curiosidade
implacável de um exame, um procedimento que seja ao mesmo tempo a medida
permanente de um desvio em relação a uma norma inacessível e o movimento
assintótico que obriga a encontrá-la no infinito. O suplício completa logicamente um
processo comandado pela Inquisição. A “observação” prolonga naturalmente uma
justiça invadida pelos métodos disciplinares e pelos processos de exame. Acaso
devemos nos admirar que a prisão celular, com suas cronologias marcadas, seu
trabalho obrigatório, suas instâncias de vigilância e de notação, com seus mestres de
normalidade, que retomam e multiplicam as funções do juiz, se tenha tornado o
instrumento moderno da penalidade? Devemos ainda nos admirar que a prisão se
pareça com as fábricas, com as escolas, com os quartéis, com os hospitais, e todos se
pareçam com as prisões?(pág.251)




quarta parte: prisão
capitulo III :
Instituições completas e austeras


A prisão é menos recente do que se diz quando se faz datar seu nascimento dos
novos códigos. A forma-prisão preexiste à sua utilização sistemática nas leis penais.
Ela se constituiu fora do aparelho judiciário, quando se elaboraram, por todo o corpo
social, os processos para repartir os indivíduos, fixá-los e distribuí-los
espacialmente, classificá-los, tirar deles o máximo de tempo, e o máximo de forças,
treinar seus corpos, codificar seu comportamento contínuo, mantê-los numa
visibilidade sem lacuna, formar em torno deles um aparelho completo de
observação, registro e notações, constituir sobre eles um saber que se acumula e se
centraliza. A forma geral de uma aparelhagem para tornar os indivíduos dóceis e
úteis, através de um trabalho preciso sobre seu corpo, criou a instituição-prisão,
antes que a lei a definisse como a pena por excelência. No fim do século XVIII e
princípio do século XIX se dá a passagem a uma penalidade de detenção, é verdade;
e era coisa nova. Mas era na verdade abertura da penalidade a mecanismos de
coerção já elaborados em outros lugares. Os “modelos” da detenção penal — Gand,
Gloucester, Walnut Street — marcam os primeiros pontos visíveis dessa transição,
mais que inovações ou pontos de partida. A prisão, peça essencial no conjunto das
punições, marca certamente um momento importante na história da justiça penal:
seu acesso à “humanidade”. Mas também um momento importante na história desses
mecanismos disciplinares que o novo poder de classe estava desenvolvendo: o
momento em que aqueles colonizam a instituição judiciária. Na passagem dos dois
séculos, uma nova legislação define o poder de punir como uma função geral da
sociedade que é exercida da mesma maneira sobre todos os seus membros, e na qual
cada um deles é igualmente representado; mas, ao fazer da detenção a pena por
excelência, ela introduz processos de dominação característicos de um tipo particular
de poder. Uma justiça que se diz “igual”, um aparelho judiciário que se pretende
“autônomo”, mas que é investido pelas assimetrias das sujeições disciplinares, tal é a
conjunção do nascimento da prisão, “pena das sociedades civilizadas”1.
Pode-se compreender o caráter de obviedade que a prisão-castigo muito cedo
assumiu. Desde os primeiros anos do século XIX, ter-se-á ainda consciência de sua
novidade; e entretanto ela surgiu tão ligada, e em profundidade, com o próprio
funcionamento da sociedade, que relegou ao esquecimento todas as outras punições
que os reformadores do século XVIII haviam imaginado. Pareceu sem alternativa, e
levada pelo próprio movimento da história:
Não foi o acaso, não foi o capricho do legislador que fizeram do encarceramento a base e
o edifício quase inteiro de nossa escala penal atual: foi o progresso das idéias e a
educação dos costumes.(pág.261)

“Instituições completas e austeras”, dizia Baltard.10 A prisão deve ser um
aparelho disciplinar exaustivo. Em vários sentidos: deve tomar a seu cargo todos os
aspectos do indivíduo, seu treinamento físico, sua aptidão para o trabalho, seu
comportamento cotidiano, sua atitude moral, suas disposições; a prisão, muito mais
que a escola, a oficina ou o exército, que implicam sempre numa certa
especialização, é “onidisciplinar”. Além disso a prisão é sem exterior nem lacuna;
não se interrompe, a não ser depois de terminada totalmente sua tarefa; sua ação
sobre o indivíduo deve ser ininterrupta: disciplina incessante. Enfim, ela dá um
poder quase total sobre os detentos; tem seus mecanismos internos de repressão e de
castigo: disciplina despótica. Leva à mais forte intensidade todos os processos que
encontramos nos outros dispositivos de disciplina. Ela tem que ser a maquinaria
mais potente para impor uma nova forma ao indivíduo pervertido; seu modo de ação
é a coação de uma educação total:
Na prisão o governo pode dispor da liberdade da pessoa e do tempo do detento; a
partir daí, concebe-se a potência da educação que, não em só um dia, mas na sucessão dos dias e mesmo dos anos pode regular para o homem o tempo da vigília e do sono, da atividade e do repouso, o número e a duração das refeições, a qualidade e a ração dos alimentos, a natureza e o produto do trabalho, o tempo da oração, o uso da palavra e, por assim dizer, até o do pensamento, aquela educação que, nos simples e curtos trajetos do refeitório à oficina, da oficina à cela, regula os movimentos do corpo e até nos momentos de repouso determina o horário, aquela educação, em uma palavra, que se apodera do homem inteiro, de todas as faculdades físicas e morais que estão nele e do tempo em que ele mesmo está.Esse “reformatório” integral prescreve uma recodificação da existência bem diferente da pura privação jurídica de liberdade e bem diferente também da simples mecânica de representações com que sonhavam os reformadores na época da Ideologia.
1) Primeiro princípio, o isolamento. Isolamento do condenado em relação ao
mundo exterior, a tudo o que motivou a infração, às cumplicidades que a facilitaram.
Isolamento dos detentos uns em relação aos outros. Não somente a pena deve ser
individual, mas também individualizante. E isso de duas maneiras. Em primeiro
lugar, a prisão deve ser concebida de maneira a que ela mesma apague as
conseqüências nefastas que atrai ao reunir num mesmo local condenados muito
diversos: abafar os complôs e revoltas que se possam formar, impedir que se
formem cumplicidades futuras ou nasçam possibilidades de chantagem (no dia em
que os detentos se encontrarem livres), criar obstáculo à imoralidade de tantas
“associações misteriosas”. Enfim, que a prisão não forme, a partir dos malfeitores
que reúne, uma população homogênea e solidária:
Existe entre nós neste momento uma sociedade organizada de criminosos... formam
uma pequena nação no seio da grande. Quase todos esses homens se conheceram nas prisões ou nelas se encontram. São os membros dessa sociedade que importa hoje dispersar. Além disso, a solidão deve ser um instrumento positivo de reforma. Pela reflexão que suscita, e pelo remorso que não pode deixar de chegar: jogado na solidão o condenado reflete. Colocado a sós em presença de seu crime, ele
aprende a odiá-lo, e se sua alma ainda não estiver empedernida pelo mal é no isolamento que o remorso virá assalta-lo.(pág.266)

Capitulo II:
ilegalidade e delinquencia

No que se refere à lei, a detenção pode ser privação de liberdade. O encarceramento
que a realiza sempre comportou um projeto técnico. A passagem dos suplícios, com
seus rituais de ostentação, com sua arte misturada à cerimônia do sofrimento, a
penas de prisões enterradas em arquiteturas maciças e guardadas pelo segredo das
repartições, não é passagem a uma penalidade indiferenciada, abstrata e confusa; é a
passagem de uma arte de punir a outra, não menos científica que ela. Mutação
técnica. Dessa passagem, um sintoma e um resumo: a substituição, em 1837, da
cadeia dos forçados pelo carro celular.
A cadeia, tradição que remontava à época das galeras, ainda subsistia sob a
monarquia de julho. A importância que parece ter adquirido como espetáculo no
começo do século XIX talvez esteja ligada ao fato de que ela juntava numa só
manifestação dois modos de castigo: o caminho para a detenção se desenrolava
como um cerimonial de suplício.1 Os relatos da “última cadeia” — na verdade, as
que cruzaram a França em todos os sentidos no verão de 1836 — e de seus
escândalos permitem encontrar esse funcionamento, bem estranho às regras da
“ciência penitenciária”. A saída, um ritual de cadafalso; é a selagem das coleiras de
ferro e das cadeias, no pátio de Bicêtre: o forçado fica com a nuca virada sobre a
bigorna, como uma estaca de ferro; mas desta vez a arte do carrasco, ao martelar, é
não esmagar a cabeça — habilidade invertida que sabe não dar a morte.
O grande pátio de Bicêtre exibe os instrumentos do suplício: várias fileiras de
cadeias com suas gargantilhas. Os artoupans (chefes dos guardas), ferreiros temporários, dispõem a bigorna e o martelo. À grade do caminho da ronda estão coladas todas aquelas cabeças com uma expressão indiferente ou atrevida, e que o operador vai rebitar. Mais alto, em todos os andares da prisão, vêem-se pernas e braços pendurados pelas grades dos cubículos, parecendo um bazar de carne humana; são os detentos que vêm assistir à toalete de seus companheiros da véspera... ei-los na atitude do sacrifício. Estão sentados no chão, emparelhados ao acaso e de acordo com o tamanho; esses ferros de que cada um deve levar 8 libras por seu lado pesam-lhes sobre os joelhos. O operador passa-os em revista tomando a medida das cabeças e adaptando os enormes colares de uma polegada de espessura. Para rebitar uma gargantilha é necessário o concurso de três carrascos: um agüenta a bigorna, o outro mantém reunidos os dois lados do colar de ferro e preserva com os dois braços estendidos a cabeça do paciente, e o terceiro bate com pancadas redobradas e achata o cravo sob seu martelo maciço. Cada golpe abala a cabeça e o
corpo... aliás, não se pensa no perigo que a vítima poderia correr se o martelo se
desviasse; esta impressão é nula, ou antes ela se desfaz diante da impressão profunda de horror que se experimenta ao contemplar a criatura de Deus num tal rebaixamento.(pág.286)


Sem dúvida as análises de La Phalange não podem ser consideradas
representativas das discussões que os jornais populares faziam na época sobre os
crimes e a penalidade. Mas elas se situam no contexto dessa polêmica. As lições de
La Phalange não se perderam totalmente. Elas é que foram despertadas pela reação
tão ampla de resposta aos anarquistas, quando, na segunda metade do século XIX,
eles, tomando como ponto de ataque o aparelho penal, colocaram o problema
político da delinqüência; quando pensaram reconhecer nela a forma mais combativa
de recusa da lei; quando tentaram, não tanto heroicizar a revolta dos delinqüentes
quanto desligar a delinqüência em relação à legalidade e à ilegalidade burguesa que
a haviam colonizado; quando quiseram restabelecer ou constituir a unidade política
das ilegalidades populares.(pág.320)







Capitulo III:
O carcerário

Tivesse eu que fixar a data em que se completa a formação do sistema carcerário,
não escolheria 1810 e o Código Penal, nem mesmo 1844, com a lei que estabelecia o
princípio do internamente celular; talvez não escolhesse 1838, quando foram
publicados os livros de Charles Lucas, Moreau-Christophe e Faucher sobre a
reforma das prisões. Mas 22 de janeiro de 1840, data da abertura oficial de Mettray.
Ou melhor talvez, aquele dia, de uma glória sem calendário, em que uma criança de
Mettray agonizava dizendo: “Que pena ter que deixar tão cedo a colônia”.1 Era a
morte do primeiro santo penitenciário. Muitos bem-aventurados o seguiram, sem
dúvida, se é verdade que os colonos costumavam dizer, para fazer o elogio da nova
política punitiva do corpo: “Preferiríamos as pancadas, mas a cela é melhor para
nós”.
Por que Mettray? Porque é a forma disciplinar no estado mais intenso, o
modelo em que concentram todas as tecnologias coercitivas do comportamento. Tem
alguma coisa “do claustro, da prisão, do colégio, do regimento”. Os pequenos
grupos, fortemente hierarquizados, entre os quais os detentos se repartem, têm
simultaneamente cinco modelos de referência: o modelo da família (cada grupo é
uma “família” composta de “irmãos” e de dois “mais velhos”); o modelo do exército
(cada família, comandada por um chefe, se divide em suas seções, cada qual com um
subchefe; todo detento tem um número de matrícula e deve aprender os exercícios
militares básicos; realiza-se todos os dias uma revista de limpeza, e uma vez por
semana uma revista de roupas; a chamada é feita três vezes por dia); o modelo da
oficina, com chefes e contramestres que asseguram o enquadramento do trabalho e o
aprendizado dos mais jovens; o modelo da escola (uma hora ou hora e meia de aula
por dia; o ensino é feito pelo professor e pelos subchefes); e por fim o modelo
judiciário; todos os dias se faz uma “distribuição de justiça” no parlatório:
A mínima desobediência é castigada e o melhor meio de evitar delitos graves é punir
muito severamente as mais leves faltas; em Mettray reprime-se qualquer palavra inútil;
a principal das punições infligidas é o encarceramento em cela; pois
o isolamento é o melhor meio de agir sobre o moral das crianças; é aí principalmente que
a voz da religião, mesmo se nunca houvesse falado a seu coração, recebe toda a sua
força e emoção; (pág.321)

Termino aqui com este texto anônimo. Estamos agora muito longe do país dos
suplícios, das rodas, dos patíbulos, das forcas, dos pelourinhos; estamos muito longe
também daquele sonho que, cinqüenta anos antes, alimentavam os reformadores: a
cidade das punições, onde mil pequenos teatros levariam à cena constantemente a
representação multicor da justiça e onde os castigos cuidadosamente encenados
sobre cadafalsos decorativos constituiriam a quermesse permanente do Código. A
cidade carcerária, com sua “geopolítica” imaginária, obedece a princípios totalmente
diferentes. O texto de La Phalange lembra alguns desses princípios mais
importantes: que no coração da cidade e como que para mantê-la há, não o “centro
do poder”, não um núcleo de forças, mas uma rede múltipla de elementos diversos
— muros, espaço, instituição, regras, discursos; que o modelo da cidade carcerária
não é então o corpo do rei, com os poderes que dele emanam, nem tampouco a
reunião contratual das vontades de onde nasceria um corpo ao mesmo tempo
individual e coletivo, mas uma repartição estratégica de elementos de diferentes
naturezas e níveis. Que a prisão não é filha das leis nem dos códigos, nem do
aparelho judiciário; que não está subordinada ao tribunal como instrumento dócil e
inadequado das sentenças que aquele exara e dos efeitos que queria obter; que é o
tribunal que, em relação a ela, é externo e subordinado. Que, na posição central que
ocupa, ela não está sozinha, mas ligada a toda uma série de outros dispositivos
“carcerários”, aparentemente bem diversos — pois se destinam a aliviar, a curar, a
socorrer — mas que tendem todos como ela a exercer um poder de normalização.
Que aquilo sobre o qual se aplicam esses dispositivos não são as transgressões em
relação a uma lei “central”, mas em torno do aparelho de produção — o “comércio”
e a “indústria” —, toda uma multiplicidade de ilegalidades, com sua diversidade de
natureza e de origem, seu papel específico no lucro, e o destino diferente que lhes é
dado pelos mecanismos punitivos. E que finalmente o que preside a todos esses
mecanismos não é o funcionamento unitário de um aparelho ou de uma instituição,
mas a necessidade de um combate e as regras de uma estratégia. Que,
conseqüentemente, as noções de instituição de repressão, de eliminação, de
exclusão, de marginalização, não são adequadas para descrever, no próprio centro da
cidade carcerária, a formação das atenuações insidiosas, das maldades pouco
confessáveis, das pequenas espertezas, dos procedimentos calculados, das técnicas,
das “ciências” enfim que permitem a fabricação do indivíduo disciplinar. Nessa
humanidade central e centralizada, efeito e instrumento de complexas relações de
poder, corpos e forças submetidos por múltiplos dispositivos de “encarceramento”,
objetos para discursos que são eles mesmos elementos dessa estratégia, temos que
ouvir o ronco surdo da batalha.(pág.334)
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Hudson 22/09/2013

Focault e sua Filosofia

Não é um livro muito simples de se ler, talvez pela complexidade de informações que devem ser passadas é um livro de rigor acadêmico mas não acadêmico ao mesmo tempo, pois a sua leitura não deve ser restrita a questão acadêmica, sendo muito rico em suas referências e pesquisa também pode ser considerado como uma aula a parte de como se construir uma pesquisa para um material sério, e relevante.


A multiplicidade de pontos enfocados, mas que vão afunilando perto do final faz com que se possa ter um sentido maior ao livro, é uma leitura que recomendo que seja feita sem muita pressa para poder tirar o melhor proveito possível de todas as informações arraigadas.

A linguagem não é complexa entretanto é preciso cuidado pelo dimensionamento que ela pode atingir não se trata simplesmente de contar a história da violência nas prisões trata-se de uma busca pelo ideal filosófico do porquê de tudo.

De pontos impactantes, é destacado a própria introdução que cita a trajetória do homem que é acusado de parricídio, Robert Damiens, e também o início do capitulo sobre o panótipo em que é relatada como funciona um vilarejo na época da peste, sendo esses pontos chaves que podem levar o leitor a pensar isoladamente e conseguir um bom entendimento sobre o que livro quer passar.


Focault talvez implicitamente, revisita a noção do justo e do poder é justo punir será que a punição enseja o aprendizado ou é um meio de controle que pode subverter ajudando a criar mais controle punitivo.


Por que essas relações ocorrem dentro de instituições sociais que de certa forma muitas vezes eram tidas como o norte de uma sociedade que busca combater a desigualdade, um milhar de questões são levantadas em cada capitulo, fazendo assim de um dos livros mais interessantes e desafiadores de se ler e também prazeroso ao mesmo tempo.


Focault, é especialmente dedicado a questão jurídica, pois além disso também debate levemente a questão da verdade real jurídica embora abordando de forma rápida aqui que será mais detalhada em outra obra "A verdade e as formas jurídicas" que também tem muitos trechos do vigiar e punir.

E um livro de questões e reflexões e talvez de poucas ou nenhuma resposta, mas que vale a leitura por isso, questionar é inconformar-se é ir além.

Ao invés de repetirmos tudo, todo um sistema que muitas vezes é criado e fadado a falhar, precisamos repensar, até mesmo nos repensar e repensar aquilo que aceitamos não só pelas relações de poder, mas por sermos seres pensantes.

Esse livro é um reflexo disso de que não pensamos para construir nossas estruturas sociais e que pelas nossas noções e relações do poder do certo e do errado isso continua a se perpetuar.


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Eduarda Sampaio 27/07/2014

Ler Vigiar e Punir é um desafio
Esse é um livro que eu recomendo que todos leiam em algum momento da vida, apesar de sua dificuldade. Não há dúvida de que a prisão é algo em que a maioria das pessoas não gosta de pensar. O tema é polêmico e espinhoso. O que Foucault demonstra aqui é que a prisão não é algo distante de nós, como muitas vezes imaginamos, e que as mesmas técnicas utilizadas para disciplinar os presos são aplicadas também sobre nós durante toda a nossa vida.

Resenha completa no link.

site: http://maquiadanalivraria.blogspot.com.br/2014/07/vigiar-e-punir-michel-foucault.html
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Mauricio.Alcides 20/04/2016

Mais que um clássico
Vigiar e Punir foi possivelmente uma das leituras mais arrastadas que já fiz na vida. Michel Foucault parece em muito seguir a linha de conterrâneo Sartre que praticamente nos diz que sua obra não é para qualquer um. Foucault realiza um trabalho monumental de pesquisa ao longo do desenvolvimento de seu livro e suas conclusões são em muito coerentes, a analise e a critica sobre a criação do nosso sistema educacional, carcerário e militar é impar e bastante coerente. O fracasso carcerário é algo que nos remete desde a sua formação e o fracasso educacional também. Eu não percebi em nenhum momento da obra uma clara referencia a Mikhail Bakunin mas sinto que Foucault gostaria de nos dizer indiretamente Ei, de uma olhada no que esse pensador um dia nos disse em Deus e o Estado.

Uma obra monumental, complexa e que exige um tanto quanto de seus leitores, mas nem por isso pouco interessante.

Nota: 8,9
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Tatá 11/01/2017

Vigiar e Punir: História da Violência nas Prisões
Michel Foucault (1926/1984), pensador e filósofo francês, detêm um acervo considerável de trabalhos publicados durante a carreira de escritor. Também exerceu por muitos anos o magistério como catedrático da cadeira de sistemas de pensamento no Collège de France, onde desenvolveu o importante estudo e pesquisa sobre a estrutura das instituições judiciais e penitenciárias antigas e modernas.

Profundo reconstrutor do pensamento sobre paradigmas das ciências sociais, Foucault através de seu estudo científico e com apoio em documentos e textos produziu uma obra de grande envergadura e importância no meio social, filosófico e jurídico, principalmente aos apreciadores da dogmática da ciência penal.

Vigiar e Punir é sem dúvida um tratado histórico sobre a pena enquanto meio de coerção e suplício, meio de disciplina e aprisionamento do ser humano, revelando a face social e política desta forma de controle social aplicado ao direito e às sociedades de outrora, especialmente naquelas em que perdurou por muitos séculos o regime monárquico.

A obra dividida pelo autor quatro partes, traz a forma de punição típica que perdurou até o fim do século XVII e princípio do século XVIII predominantemente na Europa onde o sistema de governo monárquico predominou, pontuando que o castigo da pena aplicado aos condenados travestia-se como um sofrimento físico incessante e brutal aplicado ao corpo dos mesmos. Narra contextos históricos principalmente desenvolvidos na França com numerosas maneiras de aplicação de flagelo humano, onde o poder soberano do estado mitigava qualquer forma de expressão dos direitos fundamentais inerentes a própria existência da pessoa enquanto sujeito de direitos.

Apenas para exemplificar a crueldade da apenação enquanto retribuição ao mal causado, cita secções de membros seguidas de incêndio aos restos mortais, mutilações de cabeças seguidas de facadas lançadas ao peito, enforcamento seguido de banho em caldeira de água fervente, e todas as formas possíveis e imagináveis de tortura e manifestação do poder sobre os corpos dos condenados.

Este método denotava a exortação do suplício, ou como Foucault mesmo definiu “a arte equitativa do sofrimento”, para traduzir a expressão máxima do poder estatal sobre os subordinados (a “economia do poder”, segundo o autor), alimentados pela violência aplicada ao corpo do condenado, como um processo de reconstrução da ordem violada naquele instante. Tudo franqueado por um processo criminal sigiloso e inquisitorial, onde nas palavras do insigne pensador, “o saber era privilégio absoluto da acusação”, onde o suplício se propaga enquanto agente do poder.

Eis aí a maneira de garantir o sistema vigente e legitimá-lo enquanto poder de submissão do Estado sobre as massas de populações, sistema, aliás, que não nos parece estranho nos dias atuais, na medida em que continuamos a observar no poder do Estado sobre seus cidadãos, a franca estratégia das classes dominantes em dar continuidade ao processo de ideologia da submissão cuja qual dentre outros elementos sociais, encontra na prisão um meio de tornar o indivíduo apto à absorção inconteste das classes superiores normalmente amalgamadas às elites do poderio econômico.

Segundo os estudos do Ilustre Professor, o corpo do condenado se tornava coisa do rei, sobre a qual o soberano imprimia sua marca e deixava cair os efeitos de seu poder. O povo temeroso e reverencial a este poder enxergava neste simbolismo exponencial, o caráter e função de prevenção geral negativa da pena, serviam de testemunhas para que o suplício fosse reverenciado por todos. Um martírio corporal que faz refletir ao leitor ao compreender o ser humano da época como verdadeiras massas de manobras a serviço das monarquias reinantes, sobretudo na França, donde colhido pelo autor grande parte dos relatos históricos.

Foucault narra a mudança do paradigma do martírio infligido ao condenado, abordando a temática dos reformadores dos séculos XVIII e XIX, que, enxergando nos espetáculos de tortura do corpo do condenado o surgimento da compaixão popular, passaram a pleitear a supressão delas. Surgem as prisões como forma de manutenção da lei e ordem, de novo paradigma para legitimação do poder estatal, de validação do contrato social ante uma mudança nas relações sociais, causada principalmente pela economia de mercado e circulação de bens de consumo, alvos constantes de pilhagens e de roubos.

Para dar apoio a esta nova dinâmica do poder do capital, com a mudança de novos bens jurídicos a serem protegidos, o sistema penal é concebido para deslocar-se do eixo de vingança do soberano para a defesa da sociedade burguesa. É realçada a existência de princípios mínimos a serem observados na aplicação da pena, que não mais atinge o corpo do condenado (antes coisa do rei, e agora “bem social, objeto de uma apropriação coletiva e útil”), mas sim sua alma.

Em seu estudo, Michel Foucault identifica a disciplina mantida nas prisões como algo a moldar os corpos dos indivíduos, enquanto processo de docilização para sujeição da vontade e controle da produção de energia individual voltado ao capitalismo. Dá-nos uma clara visão dos processos de adestramentos desenvolvidos no cárcere, semelhantes em seminários, quartéis, escolas, locais em que a supressão do tempo é um forte aliado neste processo de sujeição. Identifica a aprendizagem corporativa como forma de desenvolvimento de programas bem definidos para atendimento deste estado de coisas, pautado pela dominação do sistema e pela sujeição dos seres humanos.

Em verdade, o brilhante professor demonstra que as práticas disciplinares que tornam os homens domáveis (e porque não dizer domesticáveis), próprias da prisão, suplantam a órbita daquele meio, e têm alcance que transplanta muito além das barreiras impostas pelas muralhas correcionais, transmudando-se e constituindo-se em verdadeiras armas tecnológicas de poder, à alcançar todos os membros da sociedade onde encontra-se contextualizada.

O autor conclui pelo paradoxo da realidade e do modelo coercitivo de correção franqueado pelo aprisionamento, na medida em que enquanto o modelo pensado desejaria reprimir e reduzir a criminalidade, selecionar e organizar a delinquência, em verdade passa a contribuir para a manutenção dela, como um círculo vicioso e sem fim. Esta forma de constatar o sentido de punir o indivíduo põe em cheque tanto alguns estudos liberais que vêem na prisão moderna algo de mais avançado em termos de humanização das práticas penais outrora tidas como desumanas, quanto à concepção marxista mais radical, que vê nas transformações das penalidades, apenas um instrumento a mais, a dar sustentação ao modo de vida capitalista calcado na produção de massa.

Vigiar e Punir, uma obra atual e necessária à compreensão da história do direito penal, do jogo e manutenção do poder constituído sobre a sociedade de um modo geral, que nos faz refletir sobre a proteção que este importante meio de controle social pôde, e ainda pode oferecer enquanto poderoso instrumento garantidor dos interesses dominantes.

Autor: Luis Eduardo Crosselli - Advogado, Especialista em Direito Penal pela Escola Superior de Advocacia da OAB/SP e Coordenador-adjunto de internet do IBCCRIM.

Fonte: https://www.ibccrim.org.br/revista_liberdades_artigo/19-RESENHA
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Paulo.Incott 09/05/2017

Vigiar e Punir - Foucault
09/05/2017
Li pela terceira vez “Vigiar e Punir”. A primeira depois de ter lido “Em Defesa da Sociedade” e “Sociedade Punitiva”. Fez muita diferença. Ler a obra compreendendo melhor em que ponto se encontravam as pesquisas de Foucault acerca das manifestações de exercício do poder permite uma visão muito mais ampla do significado desta obra. Diante disso, acredito que Vigiar e Punir possa ser visto como um “mergulho” do autor em um aspecto específico de suas pesquisas. Seria como um profissional da área de saúde que estuda as manifestações, sintomas, efeitos de um determinado estado de saúde e que decide se deter num estudo de relatos de casos para verificar de modo concreto se as conclusões de seus estudos se comprovam.
Similarmente, Foucault se encontrava na passagem de estudos do Poder Disciplinar para estudos sobre o Biopoder. Vigiar e Punir se encaixa como um aprofundamento nas pesquisas que ensejarão esta transição, a partir da análise de um modelo específico de exercício do poder > o poder punitivo - através da genealogia da pena como protótipo das formas de poder estudas e por estudar.

Situando desta forma a obra, passemos a analisa-la brevemente.

Foucault delineia quatro objetos para este livro:
1. Desnudar os efeitos positivos (constitutivos) dos mecanismos punitivos, de modo a não falar destes em seu aspecto repressivo ou excludente, mas em sua função social criadora;
2. Analisar os métodos punitivos enquanto técnicas e táticas políticas;
3. Verificar a possibilidade de existência de uma matriz única para ciências humanas e o direito penal, de modo a perceber como se complementam parta formar uma tecnologia do poder e uma tipo peculiar de saber e;
4. Verificar a entrada da alma no palco da justiça penal como uma nova forma de investimento das relações de poder sobre os corpos.

Numa frase: Compreender de que modo ocorre o surgimento do homem como objeto de saber para um discurso científico e para uma nova técnica de poder (punitivo)

Foucault não se debruça sobre esses objetivos de forma linear. Assim, a forma mais lúcida, me parece, de fazer um apanhado de sua obra, parte da compreensão de conceitos chave nela destacados.

Um dos tópicos principais abordados por Foucault neste livro é o PODER DISCIPLINAR, originador de uma SOCIEDADE DISCIPLINAR.
Do que se trata? Para o pensador francês o poder disciplinar possui “função menos de retirada que de síntese, menos de extorsão do produto que de laço coercitivo com o aparelho de produção”.
Assim, este se insere sobre o corpos de forma bastante distinta do poder soberano até então. Ele interessa-se pela fabricação de indivíduos obedientes e úteis (dóceis). Opera através da “distribuição infinitesimal das relações de poder”.
Preocupa-se com minúcias, detalhes. Prioriza os Exames, as Análises, as Comparações. Dá ensejo a quadriculamentos que permitam cada indivíduo ser colocado no local em que produza os melhores resultados com o menor esforço.
O poder disciplinar difere do poder soberano ainda de outra forma: enquanto aquele operava a partir da lógica do espetáculo, manifestando sua atuação através de cerimônias de terror que objetivavam produzir medo e reforçar a posição do soberano, o poder disciplinar atua de forma discreta, silenciosa, suave, comportando-se como uma máquina eficiente e solitária, sem que se possa apontar um “cabeça”; fazendo crer que atua de modo “natural” ou “impessoal”.
A disciplina produz quatro formas de individualidade: celular (repartição espacial), orgânica (codificação atividades), genética (acumulação do tempo) e combinatória (composição de forças). Para isso, lança mão de quatro técnicas: constrói quadros, prescreve manobras, impõe exercícios, organiza táticas.
Tática é a técnica mais elevada > “capaz de construir, com corpos localizados, atividades codificadas e aptidões formadas, aparelhos em que o produto das diferenciações das forças se encontra majorado por combinação calculada.”

Aliado a esse conceito central de Poder Disciplinar, que se torna elementar na passagem do séc. XVIII para o séc. XIX e se reforça daí em diante, Foucault concebe a noção de ECONOMIA DO PODER e DOS CASTIGOS E TECNOLOGIA DO PODER.

A Economia do Poder e dos Castigos prescreve uma lógica de suavização do poder de punir, uma difusão de seu exercício em uma série infinita de micropoderes (sistema carcerário = arquipélago carcerário = sistema penais difusos = microsanções), atuantes em toda a estrutura social sob um mesmo princípio (o poder disciplinar). Seu objetivo é reduzir os desvios, de modo a tornar todos os indivíduos parecidos.
Através de EXAMES, RELATÓRIOS, CATEGORIZAÇÕES, AVALIAÇÕES e de uma constante e ininterrupta VIGILÂNCIA opera-se uma ORTOPEDIA MORAL.

“…definir novas táticas para atingir um alvo mais tênue, mais também mais difuso no corpo social. Novas técnicas às quais ajustar punições e cujos efeitos adaptar. Novos princípios para regularizar, universalizar a arte de castigar. Homogeneizar seu exercício. Diminuir seu custo econômico e político aumentando eficácia e multiplicando circuitos”

“Humanidade é o nome dado a essa economia e a seus cálculos minuciosos. Em matéria de pena o mínimo é ordenado pela humanidade e aconselhado pela política.”

O produto final desta Economia e desta Tecnologia do Poder Disciplinar é a NORMALIZAÇÃO, tema que ganha ênfase em toda a obra de Foucault e que será trabalhado a partir de diferentes ângulos pelo autor. Em minha visão, um dos alicerces para compreensão de todo o pensamento foucaultiano.

Esse intento de Normalização permite a emergência das ciências humanas, que sustentam, a partir de uma lógica de “humanismo” a necessidade de sistemas de castigos coerente com a lógica da produção e legitimação política calcada na filosofia contratualista.

“O funcionamento jurídico-penal não se origina da superposição à justiça criminal das ciências humanas, e nas exigências próprias a essa nova racionalidade ou ao humanismo que ela traria consigo, ele tem seu ponto de formação nessa técnica disciplinar que fez funcionar esses novos mecanismos de sanção normalizadora”

Todo o aparato de saber que aflora no apogeu cientificista opera de modo a normalizar indivíduos.
Precisa-se compreender o sistema penal que resulta desta época como parte desta nova racionalidade.
Há, na sociedade disciplinar:
“Juízes da normalidade em toda parte: professor-juiz, medico-juiz, educador-juiz, assistente social-juiz, todos fazem reinar a universalidade do normativo… a rede carcerária, em suas formas concentrada ou disseminada, com seus sistemas de inserção, distribuição, vigilância, observação, foi o grande apoio, na sociedade moderna, do poder normalizador”

Por fim, Foucault se depara com a questão da pena de prisão diante desse arcabouço teórico levantado. Surge o estranhamento. De diversos modos a reclusão não parece, num primeiro momento, adequar-se à nova racionalidade. Mais grave ainda: a pena de prisão nasce com sua crítica. Nasce “falida” em todos os seus pressupostos.
Cresce em meio a seus inúmeros projetos de reforma e contra os princípios de individualização da pena elegantemente discursados pelos reformadores (Beccaria e outros). “A diversidade tão solenemente prometida reduz-se a penalidade uniforme e melancólica.” 

Como? Para que serve o “fracasso” da prisão? De que forma se deve explicar a permanência da pena de prisão como castigo “oficial” ao longo de tanto tempo, tendo sua “ineficácia” sido apontada, provada, alardeada de forma tão clara?

Surge a análise mais intrigante de Foucault nesta obra. Nasce desta a compreensão do princípio panóptico, do papel da polícia e da importância primordial da vigilância.
Emerge um outro eixo importante do pensamento foucaultiano - a compreensão da ADMINISTRAÇÃO DIFERENCIAL DE ILEGALIDADES. Nesta reside, para o autor, a grande chave de compreensão do sistema penal tal qual se estabelece e se estende desde o do séc. XIX. Deixarei ao leitor o prazer da descoberta. Colaciono apenas dois pequenos trechos elucidativos:

“É preciso que as infrações sejam definidas e punidas com segurança, que nessa massa de irregularidades toleradas e acantonadas de maneira descontínua com ostentação sem igual seja  determinado o que é infração intolerável, e que lhe seja inflingido um castigo de que ela não poderá escapar”

“…essa grande especialização de ilegalidades se traduzirá até por uma especialização dos circuitos judiciários… diferenciação entre ilegalidade de bens versus ilegalidade de direitos… A burguesia se reservou o campo fecundo da ilegalidade dos direitos. Ao tempo que essa separação se realiza, afirma-se a necessidade de vigilância constante. Em suma, a reforma penal nasceu no ponto de junção entre a luta contra o superpoder do soberano e a luta contra o infrapoder das ilegalidades conquistadas e toleradas.”


Como conclusão, não poderia deixar de alistar duas passagens de minha predileção:


“Dizem que a prisão fabrica delinquentes. É verdade que ela leva de novo, quase fatalmente, diante dos tribunais aqueles que lhe foram confiados. Mas ela os fabrica no outro sentido, de que ela introduziu no jogo da lei e da infração, do juiz e do infrator, do condenado e do carrasco, a realidade incorpórea da delinquência que os liga uns aos outros e, há um século e meio, os pega todos juntos na mesma armadilha”

Citando Joseph Michel Antoine Servan:

“Quando tiveres conseguido formar assim a cadeia de idéias na cabeça de vossos cidadãos, podereis então vos gabar de conduzi-los e de ser seus senhores. Um déspota imbecil pode coagir escravos com correntes de ferro; mas um verdadeiro político os amarra bem mais fortemente com a corrente de suas próprias idéias; é no plano fixo da razão que ele ata a primeira ponta; laço tanto mais forte quanto ignoramos sua tessitura e pensamos que é obra nossa; o desespero e o tempo roem os laços de ferro e de aço, mas são impotentes contra a união habitual das idéias, apenas conseguem estreitá-las ainda mais; e sobre as fibras moles do cérebro se funda a base inabalável dos mais sólidos impérios.”




Nota: em que pese vivermos num país em que os desdobramentos observados por Foucault para a sanção penal não serem exatamente aplicáveis, uma vez que o sistema penal organiza-se em países marginais de modo significativamente não coerente com seus discursos, ou seja, não podendo ser compreendido nem mesmo através das manifestações do poder judiciário, uma vez que colocado em prática de modo muito mais substancial pelas agências de repressão (sistema penal subterrâneo), é válido lembrar que as categorias com que Foucault trabalha permitem uma compreensão abrangente sobre o exercício do poder punitivo, propiciando ao estudante atento um conhecimento útil para a apreciação dos mecanismos de naturalização das (ir)racionalidades do poder punitivo como um todo.
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Jon Snow 06/07/2017

uma dissertação sobre a estória da punição atráves da historia
um livro consideravelmente teórico sobre o assunto, levando a um nível academico toda a questão do conceito de punir, levando do ato da punição, até a disciplina(relacionada a redirecionar e tornar possível a volta do delinquente para a sociedade), passando até o fracasso de toda a instituição.
sendo assim, nota 4/5
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