Lucas 24/03/2018
Perdendo-se em Paris: A hipocrisia e a futilidade de uma sociedade em mudança
Victor Hugo, Alexandre Dumas, Jules Verne, Émile Zola, Marcel Proust, Henri-Marie Beyle (Stendhal)... Em pouco mais de um século (entre o final do século XVIII e o início do século XX), a França produziu para o mundo esta coletânea de autores históricos, só citando os principais. Mas dentre todos estes há ainda um que não foi citado, justamente porque o seu nome e a sua obra devem ser direcionados a um plano superior. Trata-se de Honoré de Balzac (1799-1850), o autor da maior descrição de uma sociedade feita com bases literárias, a chamada A Comédia Humana.
Oriundo de uma família com boas condições financeiras, Balzac sempre concebeu a sua literatura como algo que direcionasse o olhar crítico para grandes problemas da época, especialmente os relacionados à moral e aos costumes. Tendo vivido durante o período da Restauração Francesa (de 1814 a 1830, com o retorno da Monarquia dos Bourbon), ele pode constatar in loco as mazelas de uma sociedade que se baseava na ostentação e nas fortes desigualdades sociais. Toda a obra do autor possui esse tipo de escopo narrativo, de uma forma mais acentuada ou não: Eugénie Grandet (1834), O Pai Goriot (1835) e A Mulher de Trinta Anos (1842) são alguns dos trabalhos famosos de Balzac que tratam, respectivamente, de questões como avareza, valores familiares e importância do casamento.
Esta prática é um dos pontos que o diferencia dos seus contemporâneos literários franceses. Sem se ater ao romance puro e simples, Honoré usava sua escrita, fundamentalmente, para desnudar uma sociedade corrompida, marcada por rotulações e jogos de interesse escusos. Não que os outros autores mencionados não fizessem isso: Victor Hugo (que era amigo próximo de Balzac, tanto que Ilusões Perdidas foi dedicado a ele) detalha como poucos o caráter da miséria e das desigualdades, em seu inesquecível Os Miseráveis (1862), fazendo de uma forma romanceada o que Balzac faz de uma maneira mais crua. A diferença é que Hugo descrevia toda uma sociedade e suas mazelas com um viés que servisse para a redenção dos seus personagens, ao passo que Balzac tinha como preocupação expor e detalhar essa sociedade em suas fraquezas e contradições, sem se ater à eventual necessidade de um desfecho moralizador ou não. A comparação entre os dois, contudo, deve se restringir apenas a estes detalhes mais rasos. Os estilos narrativos são totalmente diferentes: Balzac era mais pontual em suas digressões, tinha uma escrita mais arrastada e com traços naturalistas e fornecia um ângulo psicológico bem completo, característica essa que será comentada mais a frente.
Um segundo ponto que coloca Balzac num patamar especial em relação aos outros grandes autores franceses foi a sua extensa produção literária, capaz de fazer com que ele "enfileirasse" livros e obras menores sucessivamente. Quando tinha por volta dos trinta anos de idade, e já com uma infinidade de trabalhos publicados, ele resolveu que iria agrupar todos os seus romances, os já publicados e os que seriam produzidos dali em diante, em uma única obra, A Comédia Humana. Acabou virando uma "enciclopédia" da França, que detalha a sociedade do país no século XIX em vários segmentos (estudos de costumes, cenas da vida privada, cenas da vida provinciana, entre outros). O resultado disso foi uma obra colossal, de 95 romances e outros trabalhos menores que não foram concluídos antes de sua morte. Ilusões Perdidas (lançado em partes, entre 1837 e 1843) assume um papel central dentro d'A Comédia Humana porque é o romance mais extenso da vida literária do autor, bem como um dos seus mais famosos. Sua extensão, todavia, não é meramente física: Balzac aqui fez demonstrações detalhadas da psicologia dos personagens, o que é outra característica que o diferencia dos outros autores mencionados e faz da obra um livro longo e profundo.
Ilusões Perdidas, cuja história se passa nos primeiros anos da década de 1820, se debruça sobre a trajetória do poeta e cronista Lucien de Rubempré, que deve ser encarado como um dos protagonistas d'A Comédia Humana, como o leitor perceberá. Era um jovem promissor que vivia em Angoulême, pequena cidade francesa distante cerca de 500 quilômetros de Paris. Irmão caçula de Ève, ambos órfãos de pai, era ambicioso, muito estimado pela irmã e pela mãe, compondo uma família com várias dificuldades financeiras. Enquanto frequentava o liceu da região (escola que hoje equivale ao Ensino Médio), acabou construindo uma boa amizade com David Séchard, o primeiro personagem a ser descrito em detalhes na obra. Séchard acaba "herdando" a tipografia do pai (dono de uma avareza assustadora) e com isso traz Lucien para trabalhar com ele em seu empreendimento. Logo de cara, o leitor percebe a força que a avareza e a ambição possuem quando são elementos que definem a essência de um indivíduo. Não se respeitam valores morais e laços familiares: tudo é válido para que se conquiste uma posição social superior ou um acúmulo exagerado de riquezas.
Dentro desse olhar mais nefasto que a narrativa provoca, é importante que se cite a respeito da Sra. de Bargeton, figura feminina mais execrável de Ilusões Perdidas. Rica e fascinada por artes poéticas, ela e Lucien acabam se aproximando, o que causa no protagonista um deslumbramento que o faz abandonar os valores morais que possuía e que já eram frágeis. No entanto, por viverem no interior, distante dos "costumes parisienses", a paixão mútua pela poesia que ambos sentiam não podia ser compartilhada ao contexto em que viviam, o que, junto com outros fatores interessantes, acaba por conduzir todo o núcleo narrativo da história para Paris, a partir da segunda parte da obra.
Assim, nesta primeira parte Balzac delineia os principais traços do livro: a contraposição entre interior x cidade e a força que aspectos abomináveis como ambição, cobiça, luxúria e arrogância possuem para degradar o caráter de um indivíduo. Lucien, que antes da Sra. de Bargeton tinha o sobrenome do pai, Chardon, adota informalmente o sobrenome mais nobre da mãe, de Rubempré (o "de" nos sobrenomes era sinal de nobreza). É ridicularizado por isso, o que aguça o seu desprezo contra os que o rodeiam. Ao se ver como alguém superior, que é incompreendido por uma sociedade "atrasada", vê em Paris a possibilidade de ser bem-sucedido em qualquer campo literário (poesias, crônicas, peças teatrais, etc.). E o título do livro já é bem claro no que diz respeito ao desfecho desses projetos que Lucien mantinha.
No contexto parisiense, é desnecessário detalhar toda a trajetória de Lucien, a fim de que se evitem spoiler's: vários personagens surgem, exercendo diversos tipos de influência sobre o protagonista (vale citar Daniel D'Arthez e Étienne Lousteau, que viram amigos de Lucien). Balzac acaba conduzindo a sua narrativa para um campo na qual ele era muito íntimo: a impressão de jornais e livros, na qual o autor chegou a trabalhar durante a sua vida. Mas ao fazer isso, não se atém apenas às meras questões técnicas que envolvem a publicação de uma "folha": ele adentra em meandros muito obscuros que ressaltam a influência que o dinheiro e status social possuem em notícias diversas, bem como em crônicas e críticas teatrais e literárias, que é onde a narrativa mais se desenrola. Até mesmo Lucien, já desinibido no que diz respeito ao conflito ambição x valores morais, mas do alto da sua ingenuidade, se assusta com os acordos e trocas de favores escusos que a imprensa da época era capaz de endossar. Naquele tempo, a mídia (não neste conceito, mas dentro da mesma lógica) já era vista como uma poderosa ferramenta, capaz de destruir reputações ou idolatrar demônios. E fazia isso alimentada por favores financeiros. Em um tempo atual onde se discute tanto a idoneidade do que é noticiado nos mais diversos meios, o autor acaba ressurgindo com força.
Ao descrever com detalhes a vida do provinciano Lucien na maior metrópole da França, Balzac recorre a uma minuciosa análise da consciência do personagem, em seus momentos de dúvida, revolta e desespero. Aqui, o leitor apaixonado por literatura clássica se deparará com pequenos traços niilistas que Fiódor Dostoiévski (1821-1881) tão bem exploraria cerca de três décadas mais tarde, em obras como Memórias do Subsolo (1864) e Crime e Castigo (1866). A incerteza, aliada a uma descrença geral, faz com que, em momentos muito breves, Lucien passe por momentos de confusão e contradição. Não é errado dizer que Dostoiévski levou isso em conta nas suas obras pós-prisão, já que é sabido que Honoré lhe provocou certa influência em sua vida como escritor. Mais que a semelhança com o autor russo, contudo, percebe-se em momentos pontuais uma grande carga narrativa de naturalismo, o que acaba sendo o principal ponto de diferença entre Balzac e Victor Hugo.
Todo este caráter de afronta à moral e aos bons costumes acaba conduzindo à secular questão da corrupção, que não é um mal exclusivamente brasileiro e existe desde os primórdios do homem racional. A verdade que fica é que Balzac concorda com a tese de que a corrupção é apenas uma consequência de uma série de outras práticas, íntimas ou não, que, quando realizadas com naturalidade, provocam uma corrosão social capaz de derrubar o que se entende por moral e honestidade. Tudo começa quando o indivíduo é imbuído de males universais, como a arrogância, a renegação a familiares, ao esquecimento de sua origem, ao ódio, a vitimização exacerbada, a eterna sensação de estar sendo incompreendido pelo mundo; mas também deriva da burocracia exagerada, de um judiciário que atende apenas a interesses financeiros, de alianças obscuras entre ricos e ambiciosos... Estes e outras dezenas de aspectos, fielmente citados na obra, constroem a pessoa que corrompe e se deixa corromper. Assim, Balzac faz entender por meio de exemplos que a corrupção nunca será extirpada de qualquer sociedade, e que ela é dirimida de baixo para cima e de dentro para fora, e não o contrário.
Ilusões Perdidas é um romance que sintetiza bem todas essas questões morais, relacionadas especialmente a uma sociedade hipócrita e vaidosa. É, por isso, um livro que ajuda a desnudar uma França que não pode ser apenas resumida pela sua formidável capital: o seu interior abriga estas mesmas frivolidades, mas também guarda em seu leito belos exemplos de bondade e inocência (coisa que chega a irritar, especialmente o núcleo familiar de Lucien). Ao dissecar o interior de sua pátria, Balzac conferiu à posterioridade uma obra de validade universal, cuja narrativa soará atual para todo o sempre: um livro sobre a crua e imutável realidade social, onde quase sempre não há espaço para contos de fada e finais felizes.