BetoOliveira_autor 26/08/2020minha estanteMas não me diga que você ignora a releitura da obra do Lima Barreto?
Sim, volto a afirmar que falta bagagem para se aventurar em tais obras que fogem a qualquer tipo de classificação ordinária, ainda mais quando há muita filosofia encrustada no texto.
Uma coisa é certa, Daniel, de fato quando lemos uma obra tipo Vida e Morte de M. J. GONZAGA DE SÁ nos sentimos abatidos por um estranhamento, pois, não sei se você concorda comigo, não me parece exatamente um romance a mencionada obra. Também não me sinto à vontade para catalogá-la como conto, nem mesmo uma noveleta. Há algo híbrido na forma, muito embora o estilo me lembra as novelas do Voltaire, bem como aqueles ensaios meio que romanceados.
Você categoricamente rebaixa o acervo do autor a uma "panfletagem", entretanto, creio que você confunde o texto meramente panfletário com alta carga subjetiva do autor, que se utiliza da própria vida para criar sua ficção. Autobiografia é primordial no Lima Barreto, mas ela não surge como uma autoficção, tão em voga hoje. Nesse diapasão, eu afasto o adjetivo panfletário porque não há qualquer verniz político partidário no texto, muito menos a apologia de uma específica ideologia. O que vemos à solta e de sobejo são críticas aos costumes da burocracia, ao esnobismo, apego ao status, a denúncia do racismo estrutural, etc. Vícios de uma república recém nascida que nos acompanha até hoje. Sim, Lima Barreto tinha a pena pesada e fazia uma crítica quase direta, e podemos até vislumbrar a sua insatisfação pululando sobre as páginas. Diferente fez Machado de Assis, que se utilizou da "estratégia do caramujo", de modo que pode transitar tranquilamente na sociedade carioca.
Sim, pode ser arrogância minha, mas vejo na leitora do Sérgio Buarque a visão antiquada. Volvendo ao suposto caráter panfletário da obra em tela, não sei se você já teve o prazer o romance Os demônios, do Dostoiévski. Já leu? Casonão, fica a dica, mas, se já leu, deve saber que é uma obra panfletária, com objetivos explícitos e confessados pelo próprio Dostoievski. Entretanto, que obra incrível! Ela vai nesse estilo de discutir o pensamento filosófico dominante da época. O russo da voz às vertentes do pensamento mediante seus específicos personagens. Já alertava para o risco da ideologia política.
Mutatis mutandis, o livro do Barreto traz esses tipos de discussões. Lembra da passagem de dois amigos conversando no bonde? Há muitas interessantes no texto.
Enfim, meu caro, talvez eu tenha me excedido nos comentários, de modo que peço desculpas. Só acho que devemos tentar ler o Lima Barreto a partir da premissa do projeto literário por ele proposto. É como ler Tolstoi ou Dostoievski. Se você ignora o projeto deles, suas obras de nada valem.
Da minha parte, confesso o estranhamento ao ler os ditos romances do Lima Barreto, mas eu vejo a genialidade naquele aparente embaramhamento e ausência de uma forma canonizada. Acho que o livro merece ser relido por você, e por mim também.
Por fim, você já leu O Feitiço da Ilha do Pavão, do João Ubaldo Ribeiro?
Comecei a ler e quase desisti, mas engrenei e fui até o fim. Fiquei muito surpreso. Gostei demais. Vale a pena.
Abraços