Mari 14/11/2020
Literatura feminista brasileira da mais alta qualidade
Há tanta coisa para se falar desse livro que existe o risco de começar a falar dele e não parar mais. Demorei alguns dias para fazer a resenha, porque queria pensar bastante sobre o que queria dizer.
A leitura é fluida, há a presença de algumas palavras arcaicas, mas dá para entender o significado pelo contexto. Os personagens são muito bem construídos, principalmente as mulheres, que são todas à sua própria maneira incríveis (não que sejam boas pessoas, são personagens muito interessantes mesmo), enquanto que os homens são, propositalmente, medíocres e irritantes (especialmente, Mário e Gervásio).
O foco da história é o adultério feminino, tema muito comum na época (tendo como grandes exemplares Madame Bovary e Anna Karenina), mas a forma como Júlia Lopes de Almeida aborda o assunto é revolucionária.
1) Ela critica firmemente essa escola literária, porque as mulheres sempre eram punidas ao final, sendo que não haviam cometido nenhum crime para isso e os maridos e amantes que eram medíocres ou maus não sofriam nada. Além do fato de ela afirmar constantemente que os maridos traíam as esposas e não eram cobrados pela sociedade por isso, enquanto as mulheres eram, algo que esses escritores nem abordavam;
2) O estilo de escrita da Júlia também é uma crítica, já que, Flaubert tinha um estilo tradicional, com frases e parágrafos longos, enquanto que Júlia utiliza de parágrafos pequenos, que agilizam a leitura;
3) Ela muda a ideia de que escritoras não seriam objetivas ou seriam muito sentimentais, porque enquanto os escritores homens gastavam vários parágrafos falando de sentimentos, Júlia consegue expressar todos os sentimentos necessários com poucas palavras e foca muito mais na política e na economia, que eram assuntos "proibidos" para mulheres. E ela faz isso de uma forma que conseguimos entender.
Ela conseguiu abordar inúmeros temas feministas com naturalidade, sem ser forçado, como a independência financeira, feminicídio, o voto, a opção de não casar, arte feita por mulheres e a união entre mulheres para obter independência. Hoje em dia, podem parecer temas que já foram muito discutidos, mas na época, quase ninguém falava sobre eles.
Um fator que achei muito interessante é que Júlia vai construindo a cidade do Rio de Janeiro durante a narrativa sem ser maçante, ela descreve ruas de bairros antigos, casas e também o início da formação das comunidades.
O único defeito que vejo no livro é o racismo. Embora, Júlia se preocupe com suas personagens negras e exponha os abusos que sofriam num Brasil que acabava de abolir a escravidão, ela usa termos que, atualmente, consideramos racistas e, por isso, incomodam bastante. Além disso, na hora que ela expõe esses abusos e defende os direitos que a população negra não possuía (mas deveria possuir), ela acaba se perdendo e sendo racista. Eu acredito que esses deslizes não tenham sido intencionais, mas sejam produtos da época em que o livro foi escrito, na qual ainda não havia estudos sobre racismo e, praticamente, não havia discussão sobre isso. Porém, essa questão é impossível de ignorar e não se pode cogitar em passar pano.
Não é à toa que ela era a escritora brasileira mais bem sucedida (contando tanto mulheres como homens), numa época que tinha Machado, Aluísio de Azevedo, Lima Barreto, Olavo Bilac e muitos outros. Mas, ao contrário deles, sua história foi esquecida e apagada e somente agora começamos a reparar esse erro. Marquei o livro todinho e quero ler tudo dela agora, que bom que sua obra está em domínio público.
" ? Então não leio. Sei que está cheio de injustiças e mentiras perversas. Os senhores romancistas não perdoam às mulheres; fazem-nas responsáveis por tudo ? como se não pagássemos caro a felicidade que fruímos. Nesses livros tenho sempre medo do fim; revolto-me contra os castigos que eles infligem às nossas culpas, e desespero-me por não poder gritar-lhes: hipócritas! Hipócritas!"