Despertar

Despertar J.M. Beraldo




Resenhas - Despertar


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Antonio Luiz 13/08/2010

"Despertar", do game designer João Marcelo Beraldo, não é um livro ruim e não comete erros grosseiros na narrativa ou na linguagem, apesar de a revisão, aqui e ali, deixar a desejar – ao confundir “mal” com “mau”, por exemplo, ou deixar passar frases mal construídas.

Sendo um romance baseado em um jogo, é preciso respeitar à risca a descrição do cenário e da história pré-definida do universo conhecido pelos jogadores. Uma das conseqüências é que nada que os personagens façam pode modificar seriamente o curso da história de seu universo.

Em outros gêneros, essa não seria uma limitação relevante. A maior parte da boa literatura trata de pessoas que não pretendem fazer história, apenas dar sentido à própria existência. Mas a ficção científica trata de propor, com base em especulação (mais ou menos) científica, o que aconteceria se algo diferente do que conhecemos, mas concebível como especulação, se tornasse realidade. E tratando-se de "space opera", um subgênero da ficção científica que enfatiza batalhas espaciais pelo destino do universo, ser épico na forma seria praticamente obrigatório.

Parece ter faltado uma consideração mais aprofundada desses problemas. Na essência, "Despertar" é uma história de guerra e espionagem dentro de "Taikodom" – mas tem-se a impressão de que tudo se reduz a muito barulho (e efeitos especiais) por nada. Nada significativo ou instigante decorre dessas batalhas tão grandiosas.

Dois pilotos de caça brasileiros do século XXI são reanimados nesse universo, passam por problemas de adaptação e vêm a se tornar pilotos de caças espaciais, que nesse universo podem ser descritos como uma espécie tecnologicamente sofisticada de agentes de segurança privada de grandes corporações, mercenários dedicados a defender seus interesses econômicos de piratas e outros malfeitores.

É um dos principais caminhos possíveis para quem se dispõe a jogar Taikodom: o de “ás”, piloto de caça dedicado a manobras ágeis; os outros são o de “demolidor” (piloto de bombardeiro, dedicado a ataque pesado), “batedor” (responsável por localizar áreas e inimigos) e “mercador” (piloto de cargueiros, dedicado a abastecer indústrias e mercados com matérias-primas extraídas de asteróides). Mas além disso, os dois protagonistas se envolvem em uma trama de maior escala, agindo também como detetives e espiões a serviço do Consortium, que dá as cartas no Taikodom, contra uma conspiração de “renegados”.

Nesse universo, não há democracia, nem Estado como o conhecemos. O Consortium é uma associação de grandes corporações interplanetárias que dita as leis e as põe em prática a partir do resultado das negociações entre os interesses privados de seus membros – a concretização, muito ao pé da letra, da maneira como o "Manifesto Comunista" de Marx e Engels descrevia (com intenção de ser hiperbólico) o governo do Estado moderno em 1848: “um comitê para gerir os negócios comuns de toda a burguesia”.

Os indivíduos, com a presumível exceção dos executivos escolhidos pelas empresas, não têm nada a dizer sobre o futuro de sua sociedade. Ainda assim, são intitulados, de maneira igualitária e incongruente, de “cidadãos” (ou “cid”, por abreviação), como se fossem personagens da Revolução Francesa.

Cidadão de quê? Não há Estado nacional ou universal no qual se possa ter cidadania e participar das decisões coletivas, pelo recurso simbólico do voto ou por qualquer outro meio. Seria mais apropriado, ou ao menos mais coerente com essa utopia tecnocrática do capital monopolista que os personagens fossem referidos como “consumidores”, “empregados” ou, para usar a linguagem politicamente correta dos manuais corporativos, de “colaboradores”.

Bráulio Tavares, escritor brasileiro de ficção científica, chamou de “síndrome do Capitão Barbosa” a rejeição pelos leitores do uso de personagens com nomes “brasileiros” em histórias nacionais de ficção científica espacial. Beraldo foi um pouco além do velho preconceito: deu aos protagonistas um nascimento no Brasil e nomes “nacionais” – “Cidadão Augusto Carrera, Cid Santiago” – mas para todos os efeitos eles são imigrantes sem cidadania em um futuro estadunidense, apesar de projetado pela criatividade e do engenho de brasileiros, inclusive do próprio Beraldo.

É como se o autor supusesse que os brasileiros já conseguem se imaginar no espaço, mas como caronas em um espaço gringo, assim como o astronauta Marcos Pontes. Ou como imigrantes satisfeitos por se virar bem em uma terra estranho que não lhes pertence e que não os aceita como iguais.

A concepção de futuro de "Despertar" – ausência de Estado convencional, governo por empresas privadas, colonização do espaço com tecnologia pesada, abandono indiferente da Terra, irrelevância da política e da ecologia ante o mercado e a criatividade da livre empresa – é a da ficção científica "libertarian" (ultraneoliberal) dos EUA dos anos 90, que levou conceitualmente ao extremo as idéias de Margaret Thatcher e Ronald Reagan. É uma escolha curiosa. Dada a raridade de traduções de títulos novos da ficção científica internacional desde os anos 80, essa corrente é muito pouco conhecida do público brasileiro. As concepções da FC clássica de Asimov e Clarke, das séries de tevê e cinema e dos mangás são modelos mais familiares.

Além das consciências artificiais (CAs), sofisticados softwares inteligentes que assumem o papel de “deuses” e interagem com os humanos por meio de projeções holográficas, existem quatro “estirpes” ou castas humanas em jogo: os worms, que vivem em complexos subterrâneos da Lua e de outros satélites e aparentemente respondem pela maior parte da tecnologia e da economia; os spacers, que controlam naves e estações espaciais e estão adaptados à baixa gravidade; os belters, que vivem nos asteróides e controlam a exploração de minérios; e, por último e no fim da hierarquia, os “ressurrectos”, os exilados do passado da Terra, recém-chamados a vida sem possuir nada de seu, convidados a ganhar a vida como mercenários e seguranças, sem ter realmente opção.

O Consortium é obviamente controlado por não-ressurrectos. Os ressurrectos são um pouco como ex-escravos recém-jogados ao mercado pela chamada Lei Áurea. Têm a opção de tentar fundar suas próprias comunidades “atávicas” em planetas e luas. É mais ou menos como tentar viver em uma comunidade hippie ao lado de uma sociedade capitalista, só que muito mais difícil e incongruente, visto ser impossível viver de maneira “natural” no espaço.

A certa altura, vem o discurso do herói: duas ou três linhas. Segundo ele, o Consortium é “a única esperança de sobrevivência para a humanidade e se não existir uma força central coordenando e ditando regras, será uma corrida pelo poder”. O líder aparente dos “renegados”, que na maioria parecem ser “ressurrectos” apegados aos usos do século XXI e mal integrados à sociedade do século XXIII, diz lutar por liberdade: “o que restará se o Consortium dominar tudo não será mais humano. Será alguma outra coisa qualquer.”



Em parte alguma o leitor encontrará ideais mais claros ou uma defesa mais convincente de uma causa ou de outra. Convenhamos, é fraco. A certa altura, uma consciência artificial intervém, dando ao herói, depois de atravessar certos obstáculos, a possibilidade de destruir centenas de naves e milhares de soldados inimigos e praticamente definir o desfecho da batalha decisiva com um só clique em um botão virtual. Por quê? “Sobrevivência do mais forte”, responde a CA. Não faz sentido, a não ser como clichê de videogame.

Outro aspecto conservador do romance é que a maioria dos personagens, naves e conceitos e absolutamente todas as empresas têm nomes anglo-saxões, apesar de o jogo ser criado por brasileiros, dos ressurrectos presumivelmente provirem de todos os antigos povos da Terra e de os demais (worms, spacers e belters) terem se transformado até fisicamente em relação à antiga humanidade. Entre as exceções, os protagonistas e alguns personagens secundários têm nomes “brasileiros”, há um punhado de nomes europeus (franceses, italianos, espanhóis, gregos, germânicos) e um japonês.

Curiosamente, o nome do líder “renegado” é russo e seu sobrenome foi tirado do líder de um grupo guerrilheiro da esquerda alemã dos anos 70. Há também um bandido russo, mas não há um só nome da Europa Oriental do lado “do bem”. Tem-se a sensação de ler um livro estadunidense traduzido – e o que é pior, um livro velho, do tempo da guerra fria.

Possivelmente, tinha-se em mente o público internacional desejado pelos criadores do jogo, mas mesmo assim é anacrônico. Estamos na década ascensão da China, da Índia, da América Latina ao palco da globalização. Muitos países asiáticos, inclusive o Japão e a Coréia do Sul, têm melhores infovias, usuários mais intensivos da internet e mais paixão por jogos e ficção científica do que a maior parte dos EUA.

Mesmo nos EUA, não é mais indispensável ter um nome como Esler, Clarke ou McCall para se ser levado a sério. Já é possível ser um secretário do Comércio republicano chamando-se Carlos Gutiérrez, ser um procurador-geral do mesmo partido com o nome de Viet Dinh e até vencer uma eleição presidencial com um nome árabe-africano como Barack Hussein Obama.

Nos detalhes, a história é razoavelmente bem narrada e as cenas de ação são muito bem descritas. O problema é a falta de idéias e sentido no conjunto. Falta, principalmente, uma reflexão séria sobre os ideais e as opções políticas dos protagonistas.

O “outro lado”, é verdade, recorre a um ato terrorista perpetrado por fanáticos religiosos cuja fé parece ser manipulada pelos “renegados”, mas se alguém ainda pensa que isso basta para separar “bons” e “maus” e dispensar qualquer outra reflexão, é porque não aprendeu nada desde o século passado. Continua preso ao esquema mental dos mais ingênuos admiradores de Bush júnior e Dick Cheney. A mesma mentalidade que a maioria do eleitorado estadunidense – com exceção dos grotões da direita criacionista e anticientífica, hostil ao cosmopolitismo – acaba de rejeitar.

Nada mais irônico: o primeiro livro baseado no primeiro jogo brasileiro de ficção científica vem à luz justamente quando as concepções políticas e econômicas de seu universo, baseadas em uma ideologia estadunidense dos anos 90, são superadas tanto pela crise econômica do modelo neoliberal quanto por sua rejeição pelo voto dos próprios cidadãos dos EUA, ao exercer essa prerrogativa da cidadania negada por esse mundo imaginário.
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