Humberto 29/09/2009
Bué de camaradas bacanas!
A partir da perspectiva de um garoto, o livro conta a história de transição política de Angola, isto nos anos '80, quando o país estava próximo do bloco socialista, liderado pela URSS e Cuba. Neste sentido, o livro é um entre-lugar da situação angolana, que pode ser literariamente completmentado através da leitura do "A vida verdadeira de Domingos Xavier" (José Luandino Vieira) que narra o período comunista e "O vendedor de passados" (José Eduardo Agualusa) que se concentra na fase atual, de uma Angola que busca reconstruir sua memória.
Todavia, quem já leu o clássico livro francês "Le Petit Nicolas" (Sempé-Goscinny) encontrará seus traços e influências na obra de Ondjaki - a visita do inspetor na escola, por exemplo, não está distante do texto "On a eu l'inspecteur". Por outro lado, o olhar da criança e seu ponto de vista sobre uma situação tida como "adulta e séria", também não é uma grande novidade (lembrei-me de um filme lançado em 2008, "La faute à Fidel", em que a personagem principal é Anna, uma menina de 08 anos que vê sua vida mudar quando os pais passam a viver na clandestinidade do movimento comunista francês - quem for assistir ao filme, observe como a câmera se mantém no nível do olhar da criança, buscando sua perspectiva e ponto de vista).
Todavia, "Bom dia Camaradas" tem seu charme, mostrando-nos uma África e uma literatura portuguesa ignorada pelo Brasil. É interessante observar as expressões, palavras e traços de fala características de Angola - a melhor, para mim, é o "matabicho" e o verbo "matabichar". E também detectamos a presença das telenovelas brasileiras no cotidiano angolano através da expresão "cenas dos próximos capítulos" e no nome do musseque (favela) - "Roque Santeiro".
Também gosto de ver como Ondjaki nos apresenta os odores e calores da vida angola: "se isto que eu vou dizer existe, então aquela noite tinha um cheiro quente, que pode ser uma coisa, imaginem, onde se ponha rosas muito encarnadas, folhas de trepadeiras com um bocadinho de poeira, muita relva, barulho de grilos, barulho de lesmas a andar em cima da baba, barulho de gafanhotos, um só barulho de cigarra, um cacto pequeno, fetos verdes, duas folhas grandes de bananeira e um tufo enorme de chá de caxinde, assim tudo bem espremido, eu acho que ia sair o cheiro desta noite" (p. 99).
Outra estrutura interessante do livro é a forma como o autor nos apresenta as reflexões e deduções do protagonista-narrador. Lembremo-nos que ele é uma criança, logo, suas associações são infantis, mas poéticas e perpicazes, como aquela entre o acordar cedo das velhos e o caminhar de certas lesmas, os "vinte minutos" de António que serve para definir duração e distância, o cartão de abastecimento e os presentes trazidos pela Tia Dada.
Na categoria de literatura "pós-colonial angolana", o livro nos mostra um país em transição a partir do olhar e das reflexões de uma criança e sua vida dividida entre a família, a escola, os amigos e os deveres pátrios (desfile de Primeiro de Maio e depoimento na Rádio Nacional de Angola). E, seguindo o dia a dia do personagem-narrador, acabamos por apreender o contexto político e sócio-cultural da Luanda dos anos 80.