Dara 30/12/2020
Detalhes e lonjuras
Já de início a literatura contida nestas páginas me alvejou.
"O que sabemos é que pouco podemos fazer perante a fúria de deus, mesmo este não existindo. Porque a fúria de deus são as agruras da vida. E agrura talvez seja uma palavra com uma sonoridade demasiado doce para a filha da putice com que somos presenteados todos os dias: a solidão que teima em nos acompanhar, a irmã gêmea que morre, o amor que nos falta, a morte que se insinua, a derradeira tentativa de segurarmos as rédeas do nosso próprio destino para o qual somos impelidos."
Este prefácio do cineasta Miguel Mendes já me foi mortal.
Homens Imprudentemente Poéticos traz uma trama que se passa num Japão antigo e tem como um dos cenários a Floresta do Suicídio, o que dá indícios da composição de sua ambiência. Um lugar simples, mas florido.
É abordado o amor, a fraternidade, a inimizade, as mazelas, o luto e a dor da vida de alguns poucos personagens.
Temos dois vizinhos e as relações que os circundam e entrelaçam. O Itaro, artesão com o poder de vislumbrar o futuro com pequenas mortes; a Kane, ajudante fiel; a menina Matsu, sua irmã cega que tinha as palavras como flores que plantava; e o vizinho Saburo, oleiro casado e apaixonado por sua companheira senhora Fuyu.
A trama é profunda. Algumas passagens reverberaram muito intensamente em mim. Em especial a decida ao poço. Viver o inferno com a monstruosidade de si e ainda assim abraça-la como parte própria. Abraça-la num acalento que aquece, aceita e integra. Apaziguar-se com o monstro que se é.
Um fato sobre este livro é que o Valter Hugo o escreveu por inteiro sem a palavra não. Foi engraçado quando eu tentava descrever aos meus interlocutores amigos como então as pessoas negavam as coisas. Parecia que meu raciocínio não tinha raciocínios. Era muito difícil formular como sem a negação ativa e explícita. O Valter conseguiu com tanta naturalidade que essa curiosidade poderia até mesmo ter passado despercebida se não fossem minhas pesquisas.
Eu gostei muitíssimo.
Esta edição veio de Portugal pra mim, fantasiei uma intimidade estranha de ar compartilhado com o Valter Hugo.
Me sinto feliz por ainda me ver capaz de fantasiar. Não tinha percebido que ainda conseguia.
"Sorria tristemente. A felicidade podia acontecer num ínfimo instante. O sofrimento nunca impediria alguém de ser feliz".